Brazil - BRAZZIL - "Queridas Primas" by Nilza Amaral - In Portuguese - Brazilian Literature - Portuguese Language - Brazilian Books & Authors - Short Story - April 2000


Brazzil
April 2000
Short Story

Dear Cousins

The truth had neither suppressed the anguish nor put an end to the pity of herself. I will give everything I have for my freedom. These words come from the large portrait where he poses as Napoleon Bonaparte. Why would he have to go out arm in arm with that little whore, ridiculous, with his hair painted black, the two of them going down the spiral stairway as a couple of young sweethearts.

Nilza Amaral

Que dia é hoje? Quinta, Sexta. Afinal o que importa isso à Luisa? É hoje, e ela está deitada na cama king-size, tamanho conveniente a um casal do mesmo porte. Tem os olhos semi cerrados e pingos de suor escorrem pela testa vincada. Morde os lábios e os fere. Limpa o sangue com as costas da mão, espalhando-o pelo rosto. Treme. Levanta-se e anda pelo quarto desorientada e angustiada. Vai até a janela, afasta a cortina, olha a paisagem, fecha a cortina, passa os dedos entre os fios do cabelo. Dirige-se à escrivaninha do juiz, abre a gaveta e retira dela o papel timbrado com o selo da justiça e o envelope. Começa a escrever, pára de vez em quando para controlar o tremor. Lê em voz alta o que escreve: —Queridas primas, acho que esse meu pedido causará surpresa uma vez que nosso contato pessoal tem sido muito restrito nesses últimos tempos mas laços de sangue são fortes. Sei que as lembranças que têm de mim depois do meu casamento não me são muito favoráveis, não por minha culpa, vocês sabem como é o juiz, desculpem, o meu marido. Pára trêmula nas palavras como é o juiz, corrige: como era o juiz. Acha que a carta está concisa, fria, formal, exatamente como deve ser uma carta comercial. A falta que faz a convivência...Rasga, joga os pedaços no cesto de lixo de madrepérola, decide que telefonará, é melhor, não precisará explicar muito.

Fala sozinha, melhor, reflete em voz alta. Vou ter que ouvir coisas das duas, das minhas primas de infância, da juventude, do tempo das confidências. Estou adivinhando as falas, não disse que você ia se dar mal com esse sujeito metido a besta? Vou ligar, apesar de tudo é menos íntimo. Preciso esconder as marcas, elas não podem desconfiar de nada, vou trancar o sótão. Sobe a escada em espiral, fecha a porta suavemente, evitando qualquer ruído e passa a chave, nem ela própria ouve o barulho da chave na fechadura,

Alô, Clarice? Tudo bem com você? É, faz tempo. Fala apressadamente, nervosa, enrolando o fio do telefone, molhando os lábios ressequidos. Gostaria que viessem passar os feriados...pois é, falta de tempo...eles?, não, não estarão, cada um tem a sua vida, eu estou sozinha...não, infelizmente, foi embora, acontece, os meninos tentaram ajudar, mas eu preferi ficar sozinha para pensar...foi um choque, é, para todos, depois conto os detalhes...não, tudo bem, para o jantar, lembranças a todos.

Luisa sai do quarto, vai até a sala de jantar. Observa, como se ali estivesse entrando pela primeira vez. Murmura. Mudei de vida, a vida mudou, os móveis da minha casa não parecem meus, a brisa assobiando, tudo é tão grande, tão fora de proporção, sinto-me pequena nessa sala cheia de lembranças, as vozes guardadas, palavras que esbarram nas paredes e voltam como bumerangues, a hora em que o dia começa a morrer e a noite a nascer —é a pior hora. Esse esforço diário da passagem do claro para o escuro, está me esgotando.

De tão fraca, Luisa não consegue alcançar o botão do interruptor, sua rigidez lembra-lhe a morte e talvez tenha medo de que com a claridade a verdade se revele. A verdade, o que é a verdade? Afasta a cortina, olha a rua. A garota continua rondando a casa, insistente. Por que me sinto assustada com essa garota, por que ela ainda me assusta, tudo acabou...

Escorrega pelas paredes como uma lesma pegajosa, desce até o chão, e em posição fetal ali permanece. Tenta raciocinar, descobrir porque tudo começou. Ouve vozes: você não é a primeira...você é chata, está velha, seus cabelos estão ficando brancos, ralos...

Luisa assusta-se. Esconde-se sob a grande almofada. Quem está aí? É ele, suas palavras descobriram-me aqui, saem do seu canto predileto do sofá, atacam-me, ferem-me. Preciso ter forças para rebater essas palavras.

Segura uma almofada à guisa de escudo. As falas persistem. Você perdeu a virilidade, não é mais meu marido. Essa voz é minha, é minha, vem da cozinha, vai para o quarto de casa, estou ouvindo, estou ficando louca, não pode ser...Sou impotente com você, lógico, que homem iria querer esse corpo velho...Luisa cobre a cabeça com a almofada, recusa-se a ouvir palavras tão cruéis.

As luzes acendem-se de repente, lembra-se das primas, meu deus, o convite para os feriados, são elas! Acha que não agüentará outra noite de solidão com os ecos assustadores. Já nem sabe se realmente as palavras andam pela casa, se estão na sua cabeça ou presas no sótão.

—O que está fazendo aí no chão, Luisa?

É Clarice, antes mesmo do boa noite, como vai, exige respostas. É a mais velha das primas, seu sorriso debochado parece sempre esbanjar felicidade, vai entrando e acendendo as lâmpadas.

—Procuro um grampo...Foi a única resposta que Luisa achou assim de improviso.

—Nessa escuridão? Clarice rebate sarcástica. Demoramos porque a estrada está lotada, parece que todos têm uma prima para consolar.

—Para visitar, Clarice, visitar, intervém Teresa.

Teresa, a boa samaritana, a madre superiora, isto é, se fosse virgem.

—Bem e já que estamos aqui, o que faremos nesse sanatório, desculpe, nesse condomínio de luxo isolado e privativo. Não é isso, Luís?

Luís, chega mais perto, abraça Teresa, um abraço frio, estende a mão, cumprimenta Clarice, por que não tem coragem de abraçá-la?

—Como vão vocês? E todos lá na casa?

—Como está você, Luisa? A solidariedade embutida nas palavras. Teresa, Teresa!

—Enfim, os homens sempre deixam as mulheres, não é prima Luisa? No tom de voz a satisfação de mostrar que jamais fora enganada, jamais tivera um homem. —Pela morte ou pelo abandono. Foi por isso que você não avisou a família? Afinal se um marido some...

Luisa responde à Teresa ignorando os comentários de Clarice. —Agora que vocês chegaram, melhor, mas estou com medo do que me possa acontecer.

—O passado é sempre perigoso, não é primas? E o futuro é aterrador! Clarice, o advogado do diabo.

Sente-se invadida, está abrindo a guarda ao inimigo, quem poderá saber o que as primas estarão pensando? Talvez tenham algum plano em mente. Por um instante recua, e sem querer, desfaz o convite. —Talvez queiram voltar, não é a hora certa, o que acham? A voz treme.

—Lembre-se de que há uma estrada a enfrentar e já escureceu....Lembra Teresa, a plácida prima.

—Reconheço que me precipitei, há um hiato enorme de idéias entre nós, todos esses anos, foi o medo, o medo que o mundo acabasse e me pegasse sozinha. Acho que estou correndo na direção errada e não devo levar vocês duas comigo, desabafa Luisa, sentindo-se desnuda diante dessas primas que não mais reconhece. —Estou oca, sem vida..., murmura denunciando cansaço.

—E mais desprotegida conosco do que se estivesse sozinha, é isso? Teresa tenta amenizar.

—Afinal Luisa, ele morreu, não morreu? Ou só se foi para sempre? Clarice exige respostas.

Tão fácil matar o marido, mesmo que alheio, por que ela insiste? —Morreu, morreu, para mim pelo menos. Luisa quer dar força às palavras, quer mesmo acreditar no que diz.

Indiferente, Clarice dirige-se ao refrigerador. —Cuidado, aconselha Teresa, não vá lambiscar...Esse mau hábito, dirige-se à Luísa, é responsável pelas gordurinhas ao redor dos quadris, herança de família, aperta entre os dedos o excesso de sua cintura.

Clarice perscruta o interior da geladeira, vai até a despensa, comida para um ano, murmura entre dentes. Ri, um riso enigmático.

Luisa irrita-se com aquele olhar, com a sua risada, mas de repente descobre que elas estão ali porque foram chamadas. Para fazer companhia no fim de semana prolongado, quando o ócio dos feriados proporciona reflexões inconvenientes.

Clarice continua na sua inspeção pela casa. Luisa a segue de perto, insegura, sabe que ela quer descobrir pistas, indícios. Entra no quarto da empregada, acaricia a colcha acetinada, ajeita a cortina de babados...—Foi aqui não foi, Luisa? Você enfeitou muito esse quarto, mostrou outra vida à fulaninha...

Afinal o quanto sabe Clarice além do que contei? O que descobriu além de que o juiz foi embora de casa com a empregada doméstica?

Logo atrás está Teresa, o catalisador, suavizando as palavras de Clarice.

—Parem com isso, isso é masoquismo, vou fazer um belo café para reanimar.

Sentada na cama de casal do quarto da empregada, no rosto a expressão de quem sabe de tudo, Clarice é o advogado de acusação, a inquiridora, o bispo roxo da Inquisição, pronto para queimar Luisa na fogueira.

Teresa entra preocupada em não deixar cair a bandeja, as xícaras, o açúcar. O cheiro forte do café ameniza por instantes o ambiente pesado.

—Venham, saborear esse café divino.

Teresa age como se estivesse noutro cenário. Luísa não consegue esconder o medo e a vergonha e também um pouco de raiva que está começando a acumular. Sabe que essa noite será a lavação de alma, percebe que deu à Clarice a oportunidade pela qual ela esperou a vida inteira.

Subitamente as palavras somem interpondo entre elas um silêncio desagradável que desgosta e irrita, uma raiva muda que as impede de falar, de contestar, de desabafar. Por um momento as intrusas, cuja presença contribuirá para aumentar o desespero de Luisa, no momento maior que a sua dor, calam-se, trancam-se em seus pensamentos. Mas Luisa quer continuar, é o momento da auto-flagelação. Desconfia que convidou as queridas primas para isso, para que ambas sejam os algozes que a farão confessar.

—Podem falar, sei que vão dizer que dei mais valor às aparências. Por isso casei com o juiz. O símbolo da verdade, da justiça. Veja essa foto, diz pegando o porta retratos sobre a mesa, vejam essas imagens, dois filhos e o marido, não é o que a sociedade quer? Vivi com as imagens, os primeiros anos de casamento, a felicidade, a renúncia à minha carreira de advogada, bastava um causídico, e teria que ser ele, não é assim? Quem sempre renuncia? O orgulho pelo marido promotor, os diplomas de mérito, depois o juiz implacável, a troca de conceitos por preconceitos, o mundo fechado no círculo sem saída.

As frases voltam, elas estão de novo pela sala, esbarrando nas paredes...você foi burra, sempre à disposição dos filhos, enfiada nessas roupas de seda, você não sabe o que é o mundo. Não são as frases, é a voz de Clarice. E dessa vez, ela tem uma testemunha, é Teresa concordando timidamente com a prima. —Não sei, acho que Clarice dessa vez tem razão, fala olhando para os pés, —odeio reconhecer mas é verdade.

Verdade é também que o julgamento prossegue. Luisa será julgada dentro de sua casa pela prima que acha que o mundo é o fogão e o tanque de lavar roupas, o mundo das assexuadas. Mas ela também sabe de coisas, também pode acusar.

Sentadas à mesa de jacarandá da Bahia, tomando café nas xícaras filetadas a ouro, as três mergulham por segundos em seus próprios pensamentos. De repente, como crianças surpresas, falam ao mesmo tempo. —Lembram-se do quartão da casa da vovó, das cenas de filmes, você era a Diana Durbin...

—Lógico, era a artista mais bonita de época, Teresa, você acha que ela poderia ser outra? A Joan Bennett, essa sobrava para mim...

—Você não esquece, hein, Clarice?, Eu sou morena, ou pelo menos era, lembra-se que de tanta tintura no momento era bem loira, e você é mais para o castanho...

—O mais comunzinho, não é?

—E o baile dos portugueses de Coimbra, lembram-se? Luisa voltou com a bolsa cheia de pedacinhos da capa dos universitários, também do jeito que chamou a atenção naquele chale de Portugal...

—Não me diga que você está com raiva até hoje, Clarice, você não dançou porque não quis, estava emburrada.

—E olhem para nós agora. Duas solteironas e você sozinha apesar da louça chique e dos talheres de prata.

—Clarice!

—Deixe, Teresa, vejo que Clarice não mudou nada.

Luisa imagina se o que aconteceu teria acontecido se ela não houvesse voltado da viagem frustrada naquele dia...se ao menos ele tivesse morrido, se ela pudesse esquecer a expressão de felicidade em seu rosto quando ela o descobriu com a garota nos braços, se pudesse vencer a inveja que sentira da empregadinha, daquele corpo jovem e duro, por que ela era tão jovem, por que seu corpo era tão belo sob o corpo flácido do marido, o juiz tão severo, o dono da verdade, que não fora capaz de resistir à tentação, mas então, esse havia sido o seu pecado? Deixar de amar o corpo velho da esposa e entregar-se àquela menina? A desilusão e o reconhecimento de que ela havia envelhecido, mas a raiva de presenciar a traição na sua casa...Ela o julgara e o condenara, sem dar-lhe o beneplácito da defesa. Tenta parar de pensar. As palavras mesmo não ditas são perigosas. As primas jamais poderiam ter conhecimento da verdade, esse seria mais um trunfo, faria um esforço para conservar a dignidade, a superioridade sobre as duas, não daria o prazer da verdade à Clarice ou à Teresa, desconfiava desse desprendimento dessa prima que chegara como a pacificadora—afinal o tempo muda as pessoas. Teresa deveria estar julgando seu comportamento, procurando contradições em sua fala—por isso tinha que aparentar ser o que talvez não mais fosse.

Levanta-se, vai até o jardim. O céu está negro e as constelações ainda estão lá, as estrelas de primeira grandeza em primeiro plano. As outras, poeiras no espaço infinito. E ali no jardim as vozes presentes: —e você hesitou em vir para cá, onde encontraria um céu como esse? E com o céu viera também o inferno e o demônio na figura da menina. O purgatório será essa noite com as primas.

Teresa segue Luisa, tenta desculpar Clarice, lembra a prima de como ela era rebelde na juventude, e reforça: devem ser os hormônios, o psiquiatra disse que ela precisa de umas sessões de análise.

—Psiquiatra? Luisa surpreende-se.

—É, depois da histerectomia, Clarice ficou angustiada, achando que não era mais mulher, dizia que sentia falta do útero, precisou de severa internação na clínica.

Falta do casamento, do sexo, Clarice, a mulher das cavernas, precisa da gruta do lar, essa é a razão da raiva que sente por mim, só poder ser.

—Está tudo bem, Teresa, não se aflija.

Hora de dormir, hora de vigiar. E se Clarice resolver vasculhar a casa e se abrir o sótão, vai descobrir o meu segredo. As vozes novamente,...fique, minha querida, deixe essa jovenzinha ensinar a você o que não aprendeu nos seus cinqüenta anos...

Clarice ainda não tem sono, quer conversar, voltar ao passado. —Vocês se lembram do que falávamos na juventude, —eu quero casar virgem, para os homens sexo é com as rameiras, quanta besteira ouvíamos da família, olha esse decote, não provoque os homens, evitar filho? É pecado...Lembram-se? Não mexam nos orgãos sexuais, dá paralisia nas mãos...Clarice não conversa, fala, fala como se sua vida dependesse dessas palavras. Lembram-se das tias italianas, eram assim, como Teresa é agora, será que passamos por tudo isso, ou foi um sonho?

Luisa também devaneia. E eu, o que fiz pelo mundo afora, além de ver vitrines, em New York, Londres...Suspira cansada, estressada.

—Já é dia claro e passei outra noite acordada mesmo com vocês aqui. Luisa deixa transparecer ressentimento no tom de voz. Clarice já não fala, há uma espécie de hostilidade entre elas, o peso da descoberta de não ter mais nada em comum a não ser o sangue italiano. Estão solenes e silenciosas, naquele templo que é a grande e bela casa de pé direito alto, ornada por esculturas requintadas, escolhidas a dedo pelo juiz, estática, como a três mulheres. Lá fora a vegetação está quieta pela ausência de vento e as folhas das samambaias penduradas no teto do alpendre desenham arabescos nos vidros das janelas. Clarice e Teresa não combinam com o cenário, são peças estranhas, realistas, cruas demais. A barriga de Teresa é grande, as pernas têm varizes grossas que as meias especiais não conseguem esconder—é assexuada. O rosto de Clarice é redondo, avermelhado, os dentes separados dão-lhe um ar apatetado, o cabelo é grosso, com fios grisalhos denunciando desleixo.

Como será que elas me vêem? Apesar da cirurgia plástica que fiz tentando agradar o juiz, também envelheci, e perdi o meu futuro tão bem planejado. Tenta adivinhar o que Clarice está pensando. Surpreende-se com a sua voz.

—Sabem, estou pensando naquele ano novo em que você me convidou para temperar o pernil à italiana como a vovó fazia, na ceia em que pela primeira vez estive aqui nessa casa.

Tenho vontade de pedir desculpas à Clarice. Ela sabia que fora convidada para fazer a comida, e eu percebi que ela estranhara a confiança daquela empregadinha com o dono da casa, ele chamando-a de nenê, meio embriagado, nenê traga mais vinho, limpe a minha boca, e enquanto mastigava com aqueles dentes de rato, pequenos e feios, ela via a nenê limpar a sua cara vermelha...

—Tenho que lhe dizer, fala de repente Clarice, tenho que contar a você que percebi tudo naquele ano novo entre o seu marido e aquela safada que limpava a sua boca com o guardanapo, como se ele fosse um bebê, encostava os seios nele, ria com aquela senvergonhice das putas, como você não percebeu? Como você conseguia sorrir para ele? Na certa não queria perder o seu castelo...

—Clarice, grita Teresa, pare com isso, afinal viemos aqui ajudar Luisa.

—Luisa precisa de ajuda? Com essa casa e todo o dinheiro que deve receber de pensão? Quem precisa de ajuda somo nós. Não era ela a rainha do clube, bastava ela chegar e todos os rapazes já estavam lá fazendo serenata na janela da casa da vovó, e nós fazendo sombra, feito duas bobas, achando que era para nós que eles cantavam também. Quem precisa de ajuda é você que é mãe solteira...

—Pare Clarice, vai magoar Teresa, isso pertence ao passado, são trinta anos...

— Eu nunca liguei para essas bobagens, exalta-se Teresa. Depois, Clarice, somos três velhas, o que importa isso agora, vamos tomar café da manhã, dar uma volta ao ar fresco, arejar a cabeça. E deixe o meu filho desconhecido fora disso, já sofremos bastante.

Apesar do sol e da brisa suave, o dia parece ameaçador. Apesar de não tão ameaçador quanto Clarice, está abafado e sufocante. A prima irrita-se, sente aperto no coração, respira fundo. Fala com Teresa como se Luisa não estivesse ali. —Perdemos a viagem, Luisa não confia mais nos próprios parentes, vamos embora amanhã pela manhã.

O filho de Teresa. Dado em doação assim que nascera. Filho do homem que seria o marido de Clarice. Onde estaria agora? Gostaria de saber de perguntar à Teresa, mas como ela mesmo dissera o que importa isso?

Teresa e Clarice saem logo depois do café. Clarice parece extremamente infeliz, tão diferente de apenas um dia antes, o dia em que chegou. Teresa equilibrada novamente, pede desculpas pelas malcriações da prima, reforçando que tudo era por causa da cirurgia, muito remédio, logo ela estaria melhor, Luisa também estaria e voltariam, estariam todas mais alegres, sabe como é, tudo se arranjaria, afinal parente é para essas horas. Tudo no condicional. Quer provar a si mesma que essa é a verdade. Luisa despede-se das duas, uma brisa leve acaricia seu rosto e balança os cachos do brinco-de-princesa, roxos nessa época.

Estou segura novamente, meu segredo está lacrado...Acena o lenço branco e o carro desaparece na curva.

No sótão o revólver continua sobre a escrivaninha do juiz. Luisa examina-o, o cão está defeituoso, foi ele o culpado pela fatalidade. Luisa sente as mãos mais frágeis do que nunca, o tiro havia saído por acidente, aquele barulho de bala de canhão, acabara com a felicidade e com o suplício. As palavras do quarto da empregada, você não sabe de nada sua velha, foram suplantadas pelo estrondo. A cena está ante seus olhos, o tiro ecoa no ar, vê o espelho trincando, esfarelando, pedaços de imagens, as penas de ganso voando do travesseiro, a imagem da garota pulando a janela, fuja minha menina, ele caído, inconsciente, os olhos sem brilho, a felicidade se fora. A garota ainda voltara, forçara a porta, olhar apavorado, o grito morto na garganta, rodeara a casa, e finalmente desaparecera.

A verdade não suprimira a angústia, nem anulara a pena de si mesma, dou tudo o que tenho pela minha liberdade, essas palavras saem do retrato grande onde ele está em pose de Napoleão Bonaparte. Por que ele teve que sair de braços com aquela putinha, ridículo, com os cabelos tingidos de preto, os dois descendo a escada em espiral como um casal de noivos? E de repente voltando, nenê, espere-me no quarto, esqueci a loção, por que ele voltara, por que não se fora e me deixara com a boca amarga da mulher traída? Não, agora se lembra, não aconteceu no quarto, foi no sótão, ela havia subido atrás dele implorando que ficasse, e quando ele virou o pescoço como um boneco de mola com aquele sorriso cínico, atirou, puxou o gatilho, com a força do amor ferido, da saudade. Foi ali, ali, e o levara para a cama do sótão onde às vezes ele dormia, quando ficava até tarde lendo os processos mais complicados. Quer ler esse? É de uma mulher que matou por amor, devo absolvê-la? Deixa o revólver sobre a mesa, olha para ele ali em coma, a respiração mansa, os olhos fechados, o soro pingando lentamente do frasco, lentamente. Coloca um vidro grande, dará para uma semana, até eu voltar.

Dá a partida, o carro começa a descer a pequena ladeira em direção à saída do condomínio. Puxa o breque, volta, confere se fechou todas as janelas, sobe até o sótão revê o juiz, seu marido semi morto, um vegetal como ela, talvez um dia ele volte a si, não vou permanecer aqui, sozinha, com os ecos, virei visitá-lo, trocar o soro, os lençóis, cuidar dele. Tranca a porta, entra no carro novamente e sai, deixa o sanatório, enfim Clarice havia dito a palavra certa. Percebe a garota rondando a casa, sente medo, o que ela terá visto? Terá coragem de forçar a porta? Avisarei o guarda.

Recebe a intimação no pequeno hotel de veraneio, na hora do banho de sol. A claridade desaparece, as palavras negras no papel da justiça escurecem o dia, sente arrepios, apesar do dia quente. Dizem que deve depor na delegacia da cidade serrana onde mora.

Na delegacia de polícia, vê Clarice, o que ela faz aqui? Parece mais nervosa do que nunca, esfrega as mãos, cruza e descruza as pernas, sentada no banco do fundo da sala. Teresa corre para ela: —Prima querida, desculpe, não tínhamos a intenção, achei você nervosa para ficar só, convenci Clarice a voltar, havia aquela garota forçando a porta, arrombamos, e aí...Luisa, você não confiou em nós...o juiz está se recuperando no hospital, saiu do coma, vão abrir inquérito, estão falando em homicídio...

Teresa, a madre superiora, a maldade, escondida sob a capa da santidade, revelou-se.

—Se recuperando? Luisa pergunta atônita, achando que é um pesadelo.

—É, ele vai se salvar, graças a Deus, assim sua pena será menor. Estamos com tanto remorso, não devíamos ter voltado.

Ela já me condenou, já deu a pena.

Já não ouve o que Teresa diz, só encontra o olhar implacável de Clarice, ainda sentada no fundo da delegacia. Percebe naquele olhar a desforra de quarenta anos de inveja, o prazer da vingança por jamais ter sido a preferida.

—Vamos ter que ficar, seremos chamadas como testemunhas.

O delegado ouviu o depoimento de Luisa, a verdade. Perguntou-lhe se ela tinha um advogado. Sim, ela própria. Determinou que ela esperasse o julgamento confinada ao presídio das mulheres. Sem fiança.

Os três meses de espera pelo julgamento não são longos. Ao contrário, Luisa ocupa-se de sua defesa, usa o tempo disponível para reflexão e acaba por descobrir que as duas noites de convivência com as primas expurgaram toda a infecção da relação de ódio entre elas soterrada desde a juventude Clarice tivera a sua vingança. Será que fora o suficiente para ela? E Teresa? O que esperava?

Finalmente está sentada no banco dos réus no tribunal. A sua defesa está pronta, foi fácil montá-la porque não faltou em nenhum momento com a verdade. Pensa que está segura e que o juiz será complacente. Seus filhos dão-lhe força. Vieram para assistir o julgamento e logo irão para os seus destinos.

Toda a sua segurança entretanto cai por terra quando anunciam o nome do juiz: Dr Luís Otávio D´Ávila. Impossível! Ele estava quase morto! Então Teresa não havia mentido, ele se recuperara! Sentiu alívio e emoção. Afinal ela não cometera crime algum. O processo de defesa que havia montado de nada adiantaria. O crime era outro.

A primeira testemunha é a garota.

—Você viu D. Luisa atirar?

—Não senhor. Eu ouvi, eles estavam no andar de cima.

—Por que não chamou a polícia?

—Fiquei com medo de ser presa.

—Por quê?

—Eu estava roubando o marido de minha patroa.

Agora Clarice depõe. Olha-me. Condena-me. Não há necessidade de tribunal para ela, já decidiu há muitos anos que sou culpada.

—O que a senhora descobriu no sótão?

—O senhor juiz, quase morto. Tinha uma marca de bala no pescoço.

—Chamou a polícia imediatamente?

—Não, chamamos a ambulância. A polícia não iria resolver.

Elas não haviam chamado a polícia! Não queriam me prender. Lógico, sabiam que eu já estava penando.

—Quem chamou a polícia?

—O hospital registrou a ocorrência.

Finalmente estou aqui nesse banco. Não ouso encarar o juiz. Ele cometera o crime da traição. Ele deveria estar sentado em meu lugar. No entanto é o julgador, o que vai decidir o meu destino. Como sou a minha própria advogada tenho que me defender. Transformei-me na minha primeira e única cliente. Relato todo o acontecimento daquele dia. A emoção é muito forte, declaro que apesar de tudo é uma satisfação vê-lo vivo.

—Por que a senhora não o levou para o hospital?

—Achei que ele não teria chance de sobreviver. Quis ficar com ele os últimos momentos de sua vida, como sempre estivemos juntos.

—Como advogada sabia que estava cometendo o crime de omissão de socorro e que não tinha o direito de decidir sobre a vida de seu marido?

—Naquele momento eu era a esposa machucada, não a advogada.

Finalmente terminou o martírio. Durante todo o tempo não olhei para o juiz. Os trâmites legais foram cumpridos. Ele daria a palavra final.

Três meses se passaram. Eu, Clarice e Teresa moramos juntas. Em minha casa. Cada uma de nós teve a sua vingança e estamos quites para recomeçar a nossa velhice como começamos a nossa infância e juventude. Os quinhões de sofrimento foram sabiamente divididos. A sentença do juiz livrou-me da prisão, ao declarar-me inocente. Talvez tenha sido o preço que ele pediu para morar com sua Nenê. Teresa pode desabafar admitindo o seu filho bastardo. Clarice teve a chance de despejar seu ódio contra ela por haver roubado seu noivo e contra mim pela minha vida completa com marido, filhos e riqueza. E eu, livrei-me do remorso.

—Vejam, os brincos-de-princesa estão florescendo!

É Teresa, a boa samaritana. Chama-nos para apreciarmos o ciclo da natureza.

The title of this short story in the original is "Queridas Primas."

Nilza Amaral is a Brazilian writer, author of O Florista and O Dia das Lobas, among others. She can be reached at nilzamar@osite.com.br

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