Brazil - Brasil - BRAZZIL - "eles eram muitos cavalos" by Luiz Ruffato -Short Story in Portuguese - Conto em Portugues - Portuguese Language - Brazilian Literature - April 2002


Brazzil
April 2002
Literature

tum-tum tum-tum

he's a littlejesuschrist lying down like this doesn't even
look like a child the old long blond hair goatee brown eyes
a littlejesuschrist print bought in a sunny sunday at the
republic square experimenting rebellious.

Luiz Ruffato

1. Cabeçalho

São Paulo, 9 de maio de 2000. Terça-feira.

 

2. O tempo

Hoje, na capital, o céu estará variando de nublado a parcialrnente nublado.

Temperatura—Mínima: 14°. Máxima: 23°.

Qualidade do ar oscilando de regular a boa.

O sol nasce às 6h42 e se põe às 17h27.

A lua é crescente.

 

3. Hagiologia

Santa Catarina de Bolonha, nascida em Ferrara, na Itália em 1413, foi abadessa de um mosteiro em Bolonha. No Natal de 1456 recebeu o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora. Dedicou sua vida à assistência aos necessitados e tinha como única preocupação cumprir a vontade de Deus. Morreu em 1463.

4. A caminho

O Neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum tum-tum, rege o tronco que trança, tum-tum tum-tum, sensuais as mãos deslizam no couro do volante, tum-tum tum-tum, o corpo, o carro, avançam, abduzem as luzes que luzem à esquerda à direita, um anel comprado na Portobello Road, satélite no dedo médio direito, tum-tum tum-tum, o bólido zune na direção do Aeroporto de Cumbica, ao contrário cruzam faróis de ônibus que convergem de toda parte,

mais neguim pra se foder

um metro e setenta e dois centímetros está no certificado de alistamento militar, calça e camisa Giorgio Armani, perfume Polo borrifado no pescoço, sapatos italianos, escanhoado, cabelo à-máquina-dois, Rolex de ouro sob o tapete,

mais neguim pra se foder

ela deve estar chegando, uma dessas estrelas que sobrevoam a estrada, a mulher, o patrão

compromisso inadiável em Brasília expliquei pra

sim, claro, ele o trata como

filho que gostaria de ter tido

sim, claro, o filho um babaca o cocainômano passeia sua arrogância pelas salas da corretora,

sim, claro, o filho um babaca o cocainômano desfila seus esteróides por mesas de boates e barzinhos—que já quebrou—, por rostos de leões-de-chácara e de garotas de programa—que já quebrou—, por máquinas de escrever de delegacias—que também já

sim mas é meu filho

e suborna a polícia,

o delegado,

o dono da boate,

as garotas de programa,

os leões-de-chácara,

sim mas é meu filho

sim, claro, a filha mora no Embu, macrobiótica, artista plástica esotérica, os quadros sempre os mesmos

quem não tem olhos pra ver

riscos vermelhos, histéricos, espasmódicos, grossos, finos, fundo branco

não tem olhos pra ver

uma vez comeu ela horrível no estúdio entre pincéis e latas de tinta sobre uma mesa onde jazia esticada uma imensa tela em branco

isso é arte

ela cheiro de incenso

maconha é natural

nua sob a bata indiana, restos de sêmen na superfície branca

isso é arte

mais neguim pra se foder

amuou num canto arrependida? não passa de um

empregadinho

sim, mas o pai me adora

um profissional competente

porque ganho dinheiro pra ele na bolsa

um apartamento enorme em moema um por andar três suítes

contratei um desses veados dinheiro não é problema ele montou um circo o mulherio estranha aí eu.falo a decoração é do fulano elas têm orgasmo

sim, competente:

há seis anos escorria sua pálida magreza pelas poucas sombras das ruas tristes de muriaé cidade triste

há cinco anos vestia-se com as primeiras neves de fairfield ohio graças a uma bolsa do american fields ganha em concurso promovido pela loja do rotary club de muriaé cidade triste

há quatro anos arranhava suas incertezas no citibank

suas certezas no citibank

há dois anos ganha dinheiro pro

o velho não vai deixar porra nenhuma pra mim

há um ano cuida do caixa-dois da corretora

vai ficar tudo pros

ela desembarca london-gatwick um anel adquirido na portobello road na palma da mão

é seu

Londres como estava?

tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum

5. De cor

Vêm os três, em fila, pela trilha esticada à margem da rodovia. A escuridão dissolve seus corpos, entrevistos na escassa luz dos faróis dos caminhões, dos ônibus e dos carros que adivinha a madrugada. Caminham, o mato alto e seco roça as pernas de suas calças.

São pai e filho e um rapaz, conhecido-de-vista, que, encorajado, Pode sim. Tem dez anos que vou a pé. É uma economia danada no fim do mês, resolveu acompanhá-los.

O homem dirige empilhadeira numa transportadora no Limão.

O menino tem dez-onze anos, embora, franzino, aparente bem menos. Agora, largou a escola, vende cachorro-quente—com molho de tomate ou de maionese—e coca-cola em frente à firma onde o pai trabalha. À noite, guarda o carrinho no pátio da empresa, os vigias tomam conta. Quando crescer, perder-se Brasil afora, sonha, caminhoneiro.

O rapaz, desempregado, aceita qualquer empreitada, O negócio tá feio!

O menino vai à frente, o homem no meio, o rapaz atrás.

—Esse aí ó, vale ouro, diz, orgulhoso, o pai, tentando vislumbrar a feição do companheiro, que ofega asmático às suas costas, pés farejadores. É de uma inteligência! Quer ver?

Vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, "Garanhuns", fala.

—Pernambuco, o menino replica, automaticamente.

O rapaz desdenha, "É isso?"

— Ele sabe onde ficam todas as cidades do Brasil, o pai argumenta. Tem um mapa na cabeça, o peste.

—Todas?

—Todas!

O conhecido-de-vista então pára, vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, Merda!, não consegue ler, Muito rápido... Merda! Envergonhado, pensa, Alagoinhas nome de sua cidade, "Alagoinhas", Essa, esse não acerta.

Bahia, o menino responde, displicente.

—É Bahia?, o pai indaga, pressuroso.

— É, o rapaz acede, contrariado.

Sem olhar para trás, aguarda outro ônibus que passa velozmente, "Itaberaba", nome da cidade da mulher, Agora não é... "Bahia, também", O reliento acertou! Desgramado!

Num falei?

—Onde é que esse raio aprendeu essas coisas?

—Sei não...

—Ele não é de falar não, né? Ô menino! Ô!

—É... Ele é mei caladão... Asselvajado...

Envaidecido, vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, "Governador Valadares".

— Minas Gerais.

— Impressionante!, o rapaz conforma-se. Caminham, o mato alto e seco pinica seus braços.

—Já pensou levar ele na televisão?

—Heim?

—É... naqueles programas que as pessoas vão responder as coisas...

— Televisão?

Televisão...

—Dá dinheiro, né?

—Ô, se!

O homem busca o filho que marcha à frente escondido dentro de uma jaqueta puída, dois números acima do seu tamanho

os ônibus os caminhões os carros as luzes São Paulo

Televisão...

6. Mãe

A velha, esbugalhada, tenaz grudada na poltrona número 3 da linha Garanhuns-São Paulo, não dorme, quarenta e oito horas já, suspensa, a velocidade do ônibus, Meu Deus, pra que tanta correria?, a conversa do motorista com os colegas colhidos asfalto em-fora, Meu Deus, ele não tá prestando atenção na estrada!, devota, que a viagem termine logo, reza, nem ao banheiro pode, fica balangando sobrecabeças, e, alcançando o fedor do cubículo no rabo do corredor, nada adiantaria, embora a bexiga espremida, embora o intestino solto, Meu Deus!, só se alivia nas paradas, findo o sacolejo, E agora?, Tá perto?, Paciência, vovó!,Ainda demora pouquinho ainda, o empesteado ar de janelas fechadas, vidros suados, no soalho, esparramados, papéis de bala, de bolacha, guardanapos, sacolas, palitos de picolé, copos descartáveis, garrafas plásticas, farelo de biscoito-de-polvilho, de pão, de broa, farinha, restos de comida, pé de sapatinho de crochê azul-menino, noitedia, E gente inda consegue dormir, meu Deus, a bocona jacaroa, até ronca!, até baba!, comé que?, embaralham-se distintas paisagens, cidades enoooormes, cidadezinha que, zum!, passou,

E

as cercas de arame farpado, as achas, o capim, o cupim, carcaças de boi, urubus, céu azul, cobras, seriemas, garrinchas, caga-sebos, fuscas, charretes, cavalos, bois, burros, bestas, botinas, brejos, beirais, bodes, bosta, baratas, bichos, bananeiras, bicicletas, arvrinhas, árvores, árvores, árvores,

o motor zunindo em-dentro do ouvido (zuuuummmm)

E

a caatinga, os campos, a cana, a corda, o corgo, o rio, o riacho, o riinho, o fio d'água, a água, o curtume, o couro, o chifre, a cabeça, a ferradura, a carne-de-sol, o sal, cachorros, colheres, facas, garfos, copos, pratos, a mão, os cheiros, as chaminés, os cachorros, a catinga

cuidado cuidado cuidado cuidado cuidado cuidado

a dor, as dores, as dádivas, a dor, as dores, as dores, edifícios, a chaminé, a fumaça, o cigarro, o fumo, a farinha, o feijão, o fogo, os fogos, o incêndio, as galinhas, as gentes, as traves do gol, os campos de futebol, jogadores, uniformes, cores quarando no varal, o chapéu, a bola, abelha, a bilha, os gatos, as galinhas, as janelas, os jipes, as jibóias, as janelas, as janelas, andarilhos, o medo, o mijo, os mortos, os montes, as montanhas, os mortos, os montes, as montanhas, os

E

o motor zunindo em-dentro do ouvido (zuuuummmm)

nuvens, noite, a noite noite, a pá, o pé, a poeira, paragens, picadas, pedras pedras pedras, pontes, plantações, ratos, roupas, o sertão, a seca, o sol, o silêncio, o sumo, o sol o sol o sol o sol o sol, anzol, terra seca, urubus, umbus, urubus, as vargens, o verde, o cinza, as cinzas, e o cheiro de

cuidado-cuidado-cuidado-cuidado-cuidado-cuidado

brancas vacas no verdor do pasto, sáfaras nuvens, roupa seca, carne-seca, terras, terras, terras, o vento, o dia verde-quente, a tarde azul-frienta, a noite de estrelas empoeiradas, o mundo, mundogrande, que não se acaba mais nunca, e Ô vovó, já tamos quase a bexiga estufada, dói a barriga, as costas, Ai!, as escadeiras, Ui!, as pernas, Ai, Ui, sem posição, Alá, vovó, alá as luzes de São o filho esperando Tantos anos! ganhar a vida em Sampaulo, no Brejo Velho Duas vezes só, voltou, meu Deus, e isso em solteiro, depois, apenas os retratos carreavam notícias, o emprego, a namorada-agora-esposa, eles dois, a cas descostelada, os netos, e vamos então esperar a senhora para passar o Dia das Mães com a nossa família e todos vamos ficar muito felizes não preocupa não que eu vou buscar a senhora na rodoviária lembranças a todos do a bexiga caxumbenta, o intestino goguento, como ler o olho do filho?, saber se é feliz no trabalho, no casamento, se mas Ai, a bexiga, a barriga, as costas, Ai!, as escadeiras, Ui!, as pernas, Ai!, Ui!, sem posição

Na rodoviária, de pé, esfrega as mãos.

7.66

A vibração do número de hoje estimula a realização dos aspectos materiais da vida

(mais dinheiro e prestígio)

pode contar com a ajuda de um amigo influente

pode receber uma promoção ou herança:

o momento é para ser prático

e objetivo.

8. Era um garoto

é um jesuscristinho ali assim deitado nem parece uma criança os longos cabelos louros cavanhaque antigos olhos castanhos um jesuscristinho estampa comprada num domingo de sol na feira da praça da república um garoto experimentando inconformado o vai-um das coisas um garoto formidável craque em matemática e física e química que manjava bem de português e cursava o advanced na cultura inglesa um menino maravilhoso músculos enformados no tae-kwon-do um garoto adorável empurrando o carrinho de compras da mãe no pão de açúcar achando graça da mania dela de demorar-se entre as gôndolas calculadora somando e subtraindo e multiplicando e dividindo até tropicar nos números e irritada não mais conferir preço peso data de validade e após empilhar tudo nos armários sentarem-se exaustos na sala para ver o jornal nacional equilibrando o prato com a sobra do almoço na palma das mãos os pés apoiados na mesa-de-centro e nesses momentos acreditava-se em sintonia com um algo superior em harmonia com as forças positivas do universo e até perdoava aquele que a abandonara uma criança por criar preciso de um tempo e o jesuscristinho encorpando a ausência da figura paterna será que isso vai causar algum problema na cabeça dele as apreensões receios não quero me meter meu filho mas esse rapaz esse rapaz não é uma boa companhia pra você meu filho ah a vulcânica adolescência e desdobrava-se findo o expediente no jornal em free-lances em revistas para o menino freqüentar os melhores ambientes c ria legar isso pelo menos incompetente que fora para dar a ele um pai decente de vez em quando ligava como estão as coisas aí ah esse mês não vou poder depositar o dinheiro as coisas não estão indo bem mas no mês que vem sempre a lenga-lenga no dia do aniversário e aí campeão no natal e aí campeão no ano novo e aí campeão ano que vem vamos ver se a gente tira umas férias juntos heim e as notícias

ficou sócio numa assessoria de comunicação

estou pensando seriamente em tirar o passaporte italiano e ir trabalhar na comunidade européia fazer qualquer coisa entende

casou-se de novo

virou pau-mandado na prefeitura as coisas que têm saído nos jornais tudo mentira sua mãe que é jornalista sabe é tudo sacanagem é sujeira dá nojo

separou-se e juntou-se com uma menina uns vinte e poucos anos muita celulite não não vi mas imagino hoje são todas assim até as modelos não vê

está construindo uma mansão em alphaville

está morando numa mansão em alphaville

e ela passando dificuldades para quitar as prestações do apartamentinho no jabaquara

(nunca quis brigar na justiça não queria atrapalhar a relação do menino com o pai)

e ele necessitando colocar aparelho nos dentes

e aprendia tanta coisa meu deus liam a veja e a folha de s. paulo e discutiam os assuntos quando pequenininho ele fazia cada pergunta e agora era ela quem se espantava ante um mundo cada vez mais estapafúrdio e queria engajar-se na luta pela preservação da natureza se associar ao greenpeace e naquele dia que chegou mais cedo tendinite o diagnóstico ele tomando banho o computador ligado entrou no quarto para recolher a roupa espalhada ê maloqueiro e os olhos relancearam o descanso-de-tela uma enorme bu vagina a bolsa desabou no carpete-de-madeira o molho-de-chaves desabou no carpete-de-madeira seu rosto corado emurcheceu seu coração e pensou deixar o cômodo fingir que nada mas os pés plantados o filho cruzou a soleira assustados os olhos o corpo escorrendo toalha à cintura a algazarra dos periquitos nos ipês da rua a bolsa o molho-de-chaves espalhados no carpete-de-madeira o pôster ozzy osbourne colado na porta do armário você já lanchou meu filho mãe balbuciou eu e ela já sei vamos sair e comer uma pizza que tal e a madrugada se dissipa os amigos do colégio do prédio amontoam-se entorpecidos o fumo a parafina colegas conhecidos parentes vozes velórias a cadeira à cabeceira coroa de flores saudades é um jesuscristinho assim deitado estampa comprada num domingo de sol na feira da praça da república dezessete anos em agosto

tão feliz tão lindo tão companheiro tão querido tão inteligente tão amoroso

meu deus por que que ele foi fazer isso meu deus por quê

9. Ratos

Um rato, de pé sobre as patinhas traseiras, rilha uma casquinha de pão, observando os companheiros que se espalham nervosos por sobre a imundície, como personagens de um videogame. Outro, mais ousado, experimenta mastigar um pedaço de pano emplastrado de cocô mole, ainda fresco, e, desazado, arranha algo macio e quente, que imediatamente se mexe, assustando-o. No após, refeito, aferra os dentinhos na carne tenra, guincha. Excitado, o bando achega-se, em convulsões.

O corpinho débil, mumificado em trapos fétidos, denuncia o incômodo, o músculo da perna se contrai, o pulmão arma-se para o berreiro, expele um choramingo entretanto, um balbucio de lábios magoados, um breve espasmo. A claridade envergonhada da manhã penetra desajeitada pelo teto de folhas de zinco esburacadas, pelos rombos nas paredes de placas de outdoors. Mas, é noturno ainda o barraco.

A chupeta suja, de bico rasgado, que o bebê mordiscava, escapuliu rolando por sob a irmãzinha de três anos, que, a seu lado, suga o polegar com a insaciedade de quando mamava nos seios da mãe. O peitinho chiou o sono inteiro e ela tossiu e chorou, porque o cobertor fino, muxibento, que ganharam dos crentes, o irmãozinho de seis anos enrolou-se nele.

O colchão-de-mola-de-casal onde se aninham sobreveio numa tarde úmida, manchas escuras desenhando o pano rasgado, locas vomitando pó, aboletado no teto de uma kombi de carreto, vencendo toda a Estrada de Itapecerica, em-desde a Vila Andrade até o Jardim Irene, quando viviam com o Birôla, homem bom, ele. Uma vez levou a meninada no circo, palhaços, cachorro ensinado roupinha-de-balé, macaco de velocípede, domador chicoteando leão desdentado em-dentro da jaula, cavalos destros, trapezista, equilibrista, pipoca, engolidor de espadas, maçã-do-amor, moças de maiô, algodão-doce, serrador de gente, pirulito, sorvete-de-palito. Aí começou a abusar da mais velha, agora de-maior, mas na época treze anos. Enfezada, despejou álcool nas partes, riscou cabeça-de-fósforo, o fogo ardeu a vizinhança, salvou os filhos, mas o tal, aquele, em sonhos de crack torrou, carvão indigente.

Dele herdou o menino, oito anos, seu escarro, hominho. Ano passado, ou em-antes, ignora, estourou a coceira, as costas, a barriga, as pernas, uma ferida só, coitado. Internado, as enfermeiras nem um pio ouviram, reclamaçãozinha alguma, uma graça. Levou bronca do doutor, Absurdo, falou, Irresponsável, berrou, disse para a mulher assistente-social acompanhar, Sarna, ela nem as caras deu.

Pensam, é fácil, mas forças não tem mais, embora seus trinta e cinco anos, boca desbanguelada, os ossos estufados os olhos, a pele ruça, arquipélago de pequenas úlceras, a cabeça zoeirenta. E lêndeas explodem nos pixains encipoados das crianças e ratazanas procriam no estômago do barraco e percevejos e pulgas entrelaçam-se aos fiapos dos cobertores e baratas guerreiam nas gretas. Já pediu-implorou para a de treze ajudar, mas, rueira, some, dias e noites. Viu ela certa vez carro em carro filando trocado num farol da Avenida Francisco Morato. Quando o frio aperta, aparece.

A de onze, ajuizada, cria os menorzinhos: carrega eles para comer na sopa-dos-pobres, leva eles para tomar banho na igreja dos crentes, troca a roupa deles, toma conta direitinho, a danisca. E faz eles dormirem, contando invencionices, coisas havidas e acontecidas, situações entrefaladas no aqui e ali. Faz gosto: no breu, a vozinha dela, encarrapichada no ursinho-de-pelúcia que naufragava na enxurrada, encaverna-se sonâmbula ouvidos adentro, inoculando sonhos até mesmo na mãe, que geme baixinho num canto, o branco-dos-olhos arreganhado sob o vai-vém de um corpo magro e tatuado, mais um nunca antes visto.

10. O que quer uma mulher

Ajeitando no nariz os óculos de massa preta, a haste esquerda colada com esparadrapo, as lentes de vidro arranhadas, a mulher penetra com vagar na pequena cozinha, dirige-se à pia, destorce com dificuldade a torneira atipoiada com elástico e barbante entrelaçados e lava um copo-de-requeijão, Frajola persegue o Piu-Piu no decalque. O marido, que sentado à mesa levava à boca uma xícara de café com a mão direita, enquanto a esquerda segurava aberto um livro, ligeiramente inclinado para proporcionar foco à vista astigmatizada, assusta-se, eleva os olhos, Aconteceu alguma coisa?

Arrastando pantufas esgarçadas, a sola encaroçada, a mulher aproxima-se da mesa, toma a garrafa térmica, despeja um gole de café no copo-de-requeijão, rasga um pedaço de pão francês dormido, lambuza-o de margarina, volta a recostar-se na pia. O que que você está lendo aí?, indaga, displicente, aconchegando a mão esquerda sob o xale que abraça a camisola de alça. Ele, descansando o volume sobre as pernas, Microfísica do Poder... do Foucault... Achei num sebo... na João Mendes, justifica-se, enfarado. Os dedos da mão direita varrem os farelos que se esparramaram pela toalha axadrezada, tentando edificar um montinho único. Por quê... por que que você já está acordada a essa hora?

Ela entreabre o basculhante da janela que dá para a rua e observa, resguardados pela luz anêmica do poste, os primeiros passageiros do ônibus que daqui a pouco começa a circular. Mastiga o pedaço de pão, empurra-o com o resto do café. Vira-se e, como se numa sala-de-aula, calibra um ponto imaginário na parede contrária, na altura da caixa-de-força cinza, a meio caminho entre o armário de aço vermelho enferrujado e a geladeira amarela manca

ontem de noite eu vinha vindo do colégio o trânsito estava tudo parado ali na altura do Limoeiro um monte de viatura da polícia sirene ligada uma confusão danada e eu sozinha morrendo de medo sei lá a gente não dá conta do que passa pela cabeça nessa hora aí

(O marido enche a xícara de café, acende um cigarro, uma lava-pé escala sua mão aberta)

comecei a ouvir o maior tiroteio pensei em fugir mas ainda corria o risco de ter o carro roubado já pensou? aí tirei a chave da ignição deitei na poltrona de bruços um medo de morrer ali sozinha e então aconteceu uma coisa engraçada parece que eu desmaiei viajei no tempo sei lá me vi de novo mocinha com meus colegas do grupo-de-jovens numa excursão nem imagino pra onde e alguém tocava violão e cantávamos e ríamos e aí começaram a buzinar atrás de mim e assustada dei um pulo liguei o carro engatei a primeira e vi os soldados na calçada arrastando pelas pernas dois sujeitos ensangüentados deviam estar mortos já e vários outros sentados na guia só de cuecas mãos na nuca parecia cena de filme americano

(O marido descruza as pernas, esmaga a guimba no pires, agoniado confere as horas no relógio da parede.)

A mulher pastoreia os olhos sonados por entre a fumaça azulada que se dispersa próximo à lâmpada de quarenta velas acesa.

A vizinhança espreguiça-se

uma discussão, logo abortada

uma porta que se fecha

um rádio ligado

cachorros que latem

a porta de aço descerrada da padaria

passos rápidos na calçada

um bebê que esgoela

uma sirene, longe "Polícia?"

o ônibus encosta, os passageiros apressam-se, arranca e eu decidi que não quero mais essa vida pra mim não não quero

(O marido, impaciente, "Vou acabar perdendo a hora",

Mas...

cansei nada vale tanto sacrifício trabalhar trabalhar trabalhar pra quê? a gente quase não se vê mais não sai pra lugar nenhum quanto tempo tem que você nem me procura

acende outro cigarro, levanta-se, caminha na direção da mulher,

É... é verdade... a gente precisa sentar pra acertar umas coisas... Mas... sinceramente... não acho... assim... que as coisas estejam tão ruins assim não...

o problema é que você se contenta com qualquer coisa pra você de qualquer jeito está bom

tenta envolvê-la nos braços marinhos de sua blusa descosturada, ela se desvencilha, volta-se para o basculhante, lá fora bocejos do dia.

sabia que estou devendo de novo no banco? sabe porquê? porque o que a gente ganha não dá pra vencer o mês e o pior é que a gente não consegue sair dessa merda estamos cada vez mais

Você está falando alto...

Ansioso, o pastor-alemão arranha a porta da cozinha, choraminga. Na contra-luz, o rosto lusco-fusco da mulher.

Fala baixo... os meninos... vão acabar acordando... Calma...

calma o quê? estou cansada não está vendo? estou cansada muito cansada cansada de viver com um um lunático que a única coisa que dá valor na vida é a esses livros que só servem pra encher a casa de fungos e adoecer as crianças só pra isso e a esse esse esse estilo de vida essa essa opção pela pobreza ah tenha paciência o que há dez anos me fascinava hoje me aborrece

Mas

deixa eu falar eu não acabei ainda não deixa eu desabafar eu nunca falo

As crianças... vai acabar acordando as

fico segurando as pontas aqui dentro de casa nem pra trocar uma lâmpada você serve claro você tem muitas qualidades é fiel honesto trabalhador mas uma mulher uma mulher precisa muito mais do que isso muito mais

Mas

o problema o problema é que cheguei à conclusão uma conclusão terrível você no fundo no fundo é é um inconformista conformado no fundo você quer é continuar dando suas aulinhas porque dentro da sala-de-aula ninguém te enche o saco ninguém te questiona

Mas

essa nossa pobreza é uma bela desculpa pra sua falta de empenho de ousadia de coragem você esconde sua covardia a sua falta de vigor atrás do seu inconformismo intelectual como se o mundo estivesse morrendo de medo da sua indignação ah ah ah

Mas

uma mulher uma mulher precisa de muito mais do que isso bem mais meu caro você não vê o futuro meu amor porque você não tem futuro

Mas

você não entende nunca entendeu você acha realmente que a vida se resume a isso morar mal dever pra todo mundo nunca ter dinheiro pra comprar uma coisinha diferente pra comer fora viajar

Mas

é só ficar aqui enfiado dentro de casa tensa na hora de sair tensa na hora de chegar rezando pra que nossos filhos não se envolvam com a bandidagem do bairro não se metam com drogas

O marido acende outro cigarro, espana as côdeas que sobraram agarradas à roupa, junta os livros, coloca os óculos,

desculpa eu eu não quis te ofender

Não ofendeu não...

é que eu estou eu estou tão cansada

Eu sei... Você está precisando tirar umas férias... descansar um pouco...

não estou precisando é de ah não adianta você não ia entender não adianta

escancara a porta que dá para um quintalzinho acimentado, uma aragem fria e o cachorro entram estabanados, a mulher agasalha-se, ele preme seu braço com carinho,

Tem que ter força... persistência...

eu estou ficando velha o tempo está esgotando

afaga a cabeça do pastor-alemão, que, agitado, aguarda uma ordem).

Precisa lavar lá fora... olha o cheiro! Quieto! Quieto!

Ela tranca a porta da sala

e apoiando-se na maçaneta

ouve o rangido do portão

o motor do chevette

cães que latem

passos na calçada

vozes

um ônibus que arranca

o rangido do portão

o motor do chevette

vozes

?quem é esse homem, meu deus, cara gorda ponte-móvel barriga-de-barril roupas desleixadas sem amigos

que gasta as manhãs de sábado lavando o cachorro e o quintalzinho latinhas de cerveja e tira-gostos espetados no palito que gasta as tardes de domingo vendo futebol na televisão latinhas de cerveja e tira-gostos espetados no palito

e que dorme em sua cama

e que é o pai de seus filhos

e que

meu deus

já não reconhece

quem é esse homem quem?

11. Chacina n° 41

Bem dado, de baixo para cima, o chute que atingiu as costelas à mostra do vira-lata catapultou-o para o meio da rua, onde, aterrizando meio de banda, escapuliu ganindo, sem atentar tamanha crueldade. Só empós escapar ligeiro por entre valas fétidas e becos sonolentos, escuridões e clareiras, é que, encorajando-se, tornou ao revés. Já ninguém não havia extorquindo a manhã nascitura. Parou, resfolegante, o coraçãozinho às corcovas, estendeu-se sobre o corpo trêmulo, a confusa recém-lembrança. Por que fora agredido? Arfando, a língua lambe o pêlo duro, amarelo-sujo, tenta escoimar os doloridos. Por quem fora agredido? Os dentes agudos mordiscam ao léu, à cata de invisíveis pulgas. Exausto, a cabeça pende sobre as patas esticadas, cerra os olhos, o rabo sossega, suspira. Aos poucos, os saquinhos coloridos assentam no fundo do caleidoscópio. Caminhava, entreabrindo cortinas da noite à procura de seu dono, orelhas afiladas, todo prontidão, porque sabia da Vila Clara, várias vezes enxotado, pontapés, baldes de água quente, pedras, bombinhas, foguetes, porretes, até tiros, sim senhor, até tiros!, quando, próximo ao salão onde os pés do povo forrozeiro levantam finas nuvens de cimento, avistou a cena intrigante: debaixo do poste, como que dormissem, três pessoas deitadas, quase amontoadas umas junto às outras. Cauteloso, chegou mais perto, avaliou. Bêbados não se encontravam, disso entendia, e muito. Paciente, acompanhava madaleno a via-sacra do seu dono, engastalhando-se em botequins, enroscando-se em árvores, a coluna curvada sob o saco-de-estopa abarrotado de latas-de-alumínio macetadas. O que exalava dos corpos era azedume de suor embaralhado ao doceamargo do medo. Pedaços de chumbo ricochetearam na parede da oficina-mecânica arrancando lascas do enorme Ayrton Senna grafitado—mais tarde, a polícia técnica colheria vinte e três cápsulas calibre 380. O sangue borbotava das várias perfurações na pele formando no chão uma mancha vermelho-escura que, espraiando-se pela calçada, descaía na direção da guia, quando reduzia-se a dois débeis fiozinhos que, mal alcançavam a rua descalça, morriam absorvidos pela terra. Concentrado, buscava reconhecer os rostos, dois dos três eram garotos ainda, quando sentiu a pontada na altura do pulmão, quase pôs o pouco que havia comido para fora, recolheu o rabo, baixou as orelhas, disparou, suspendendo-se no breu. Assustado, arregalou os olhos, já se ouviam os barulhos que acompanham o sol, pôs-se de pé, a pata direita traseira coçou a orelha carcinômica, tinha que achar seu dono que gostava de conversar com ele, acariciar seu corpo despelado, beijar seu focinho, brincar de cócegas, fazê-lo de travesseiro, que dividia os restos de comida com ele. Dia desses, refestelou-se na grama do canteiro central de uma avenida, à tarde, nunca mais o viu. Lá ficou apenas o saco de estopa abarrotado de latas de alumínio macetadas.

12. Touro

A lua nova, no signo de Câncer, pede recolhimento, reflexão. Depois da agitação dos últimos dias, é hora do ritmo lento e contínuo. Aqueles que se deixarem levar pelas emoções podem se arrepender. Estão condenadas todas as atitudes radicais. O agrupamento dos planetas em Touro, signo da terra e da posse, tende a levar a exageros, mas a energia lunar acalma os ânimos.

This excerpt was taken from the initial pages of eles eram muitos cavalos, a book nominated in 2002 for the Jabuti, Brazil's most coveted literary award. You can contact Boitempo Editorial at www.boitempo.com or calling 11-3875-7285.

Luiz Ruffato, the author, was born in Cataguases, state of Minas Gerais, in 1961. He has three books published: Histórias de Remorsos e Rancores (1998), "(os sobreviventes)" (2000) and eles eram muitos cavalos (2001) all by Boitempo Editorial. You can contact the author at rufato@jt.com.br  


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