Brazil - BRAZZIL - "Os Anos Frageis" and two more by Julio Cesar Monteiro Martins - Unpublished - Short stories - Brazilian Literature - Books & Authors - April 1998


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UNPUBLISHED


Three
by
Júlio César
Monteiro Martins

The Fragile Years

Jorge didn't know that those fragile years were his apogee. He didn't even know what an apogee was.

Jorge levantou-se da cama num salto. Sentia o espírito leve e o corpo mais ainda. Tudo era muito leve, iluminado, solto, como se um grande peso que ele carregava há muitos meses, de tal modo que nem mais o sentia, tivesse subitamente sido retirado de seus ombros. Parecia flutuar, e todas as suas faculdades e sentidos funcionavam bem acima do normal.

Olhou o relógio. Duas horas da madrugada. Havia se deitado depois da meia-noite, exausto. Como poderia ter despertado logo em seguida naquele estado de euforia e excitação? Para onde fora o cansaço? O que teria acontecido, dentro ou fora dele, que o puxara do leito com tamanha energia?

Jorge perambulou pela casa, regou as plantas, fez café, tomou banho, observou o mar tranqüilo e as ruas desertas pela janela, guardou as roupas usadas no cesto, agitou-se de várias formas, esperando o tempo passar e o dia amanhecer para tomar o caminho do hospital onde sua mãe havia sido internada na Unidade de Terapia Intensiva na manhã anterior.

Jorge era um homem atraente de vinte e seis anos, filho único, tinha uma namorada bonita e inteligente, e tinha também uma amante muito sensual com quem se encontrava uma vez por semana. Ele não havia ainda definido a sua futura carreira e sonhava em ser diretor-de-cinema apesar do cinema brasileiro não existir mais àquela altura. Ou talvez estudasse Ciência Política, ou vídeo-arte... Jorge não sabia que aqueles anos frágeis eram o seu apogeu. Ele não sabia sequer o que era um apogeu.

Lúcia, a mãe de Jorge, também era uma mulher bela e inteligente, de quarenta e nove anos. Divorciada desde muito jovem, professora na universidade local, dinâmica e sagaz para a mecânica do mundo, ela havia se tornado, desde a infância do filho, a base financeira e moral daquela pequena família, a sua inspiração e o motor que a mantinha em movimento. Alguns meses antes da sua internação ela havia percebido um pequeno caroço no seu seio, um tumor maligno como os exames mostraram. Mesmo depois de ter sido mutilada por uma cirurgia radical, o tumor acabou desencadeando em seu corpo um distúrbio imunológico que culminaria num edema pulmonar, num quadro irreversível. Expelindo sangue pelo nariz e pela boca, ela fora levada para a U.T.I. de um hospital das proximidades. No momento em que a maca foi empurrada para dentro da ambulância ela ainda encontrou forças para levantar o braço e acenar para o filho, que respondeu ao aceno da portaria do edifício.

Mãe e filho haviam conversado pouco sobre aquele elemento estranho, o tumor, já que a cada tentativa de avaliação racional dos fatos, um novo agravamento, com novos e inesperados sintomas, vinha assombrá-los. Tudo havia acontecido tão rápido que era impossível assimilar as informações e fazer qualquer tipo de previsão. A perplexidade de ambos era tamanha que o sofrimento não chegava a tomar forma, e a reação da família mais parecia a excitação de quem faz um turismo forçado em terras totalmente exóticas. Além disso, Jorge não conseguia concentrar-se muito naquele panorama trágico. Quando não estava mergulhado nos jogos amorosos ou fazendo amor propriamente, estava divagando sobre os seus projetos políticos ou cinematográficos, uma fantasia constante com a qual ele afagava o próprio e incerto ego.

Às seis e meia, Jorge estacionou o carro no pátio do hospital. Encontrou a sua avó e a sua tia, que haviam passado a noite em vigília, sentadas num quarto vazio, ainda à espera de notícias. Elas lembravam, em suas conversas, alguns episódios de infância e da juventude de sua mãe. Jorge achou aquele assunto esquisito e saiu do quarto, atravessou o longo corredor e resolveu postar-se diante da porta da U.T.I., com as mãos nos bolsos, assistindo aos médicos e enfermeiras entrarem e saírem apressados, ignorando totalmente a sua presença. Pensou em perguntar alguma coisa sobre a sua mãe, mas desistiu ao ver que ninguém responderia a um homem de pé num corredor. Voltou para o quarto.

Após alguns minutos chegou a sua namorada, perguntando pelo estado de sua mãe. Ninguém tinha nada a dizer. Jorge pegou na sua mão e levou a garota para o pátio. Sentaram-se num banco de cimento próximo à mureta de onde se podia ver grande parte da cidade. Era um dia nublado. A moça tinha os olhos vermelhos e cansados, o que de certa forma humanizava a sua beleza loura e clássica. Jorge estava completamente lúcido e descansado, com o rosto radiante como uma criança em férias.

—Você também passou a noite aqui?

—Não, eu fui acordado às duas da manhã e não consegui dormir mais.

—Acordado por quem?

—Eu não sei. Fui acordado, só isso...

—Estranho...

—É, estranho... Saí de casa logo que o dia clareou. Nem o jornal tinha chegado ainda. Passei na banca, mas ainda estava fechada...

—Pra que você quer o jornal?

—Ué, eu leio jornal todos os dias...

—Mas hoje...

—O que é que tem hoje?... Eu estou curioso para saber qual foi a sentença do Supremo Tribunal sobre o processo do Ministro que aceitou aquela propina de trinta mil dólares de uma empresa de Brasília. Já é o terceiro Ministro que cai por corrupção em menos de dois meses. Uma loucura... Esse Governo é um circo... Nós saímos de uma ditadura para cairmos na democracia hipócrita de uma oligarquia. Eu não sei o que é pior, sinceramente... E ninguém reage, ninguém faz nada, como se esses escândalos fossem completamente naturais. Fico pensando se essa indiferença, essa apatia, não seriam parte do caráter acomodado e covarde do povo... Mas o povo não é covarde. Ele enfrenta os piores desafios no dia-a-dia. Cheguei à conclusão de que o povo brasileiro está aturdido. É tanto absurdo, um após o outro, que as pessoas não têm tempo de processar mentalmente as coisas. Ficam totalmente aturdidas...

—Você está preocupado com o que vai acontecer com o Ministro, Jorge?...

—Eu estou preocupado com a situação do povo brasileiro. Com o destino deste país.

—Você é muito estranho.

—Eu? Por quê? Essas coisas afetam a vida de todo mundo...

—Afetam mesmo? E com o conflito entre a Armênia e o Azerbaijão, você não está preocupado?

—Bem, claro... Mas isso já é um problema mais distante, que só nos afeta indiretamente...

—Você está bem? Está se sentindo bem?

—Claro! Eu estou ótimo. Por que essas perguntas todas? Você não entende... Se esse Ministro realmente for processado e condenado, o Governo vai ter que...

—Eu não estou interessada no Governo! Eu vou lá dentro ver se eles já têm alguma notícia... Se você quiser, pode ficar me esperando aqui...

—Não, eu vou lá com você. Não quero ficar sozinho aqui...

No quarto, apenas a avó estava sentada em silêncio numa poltrona. Os dois entraram, Jorge sentou-se num sofanete e a sua namorada perguntou se tinham alguma notícia. A avó sacudiu a cabeça. Os três ficaram em silêncio por alguns minutos. De repente a porta se abriu num golpe e a tia entrou esbaforida, suada, com uma voz esganiçada:

—Ela morreu! Eles disseram que a Lúcia morreu!

—Que é isso? —levantou-se a avó. —Como?

—O médico só disse que ela morreu faz alguns minutos.

—Ai, meu Deus! —gritou a avó, e desabou sobre a poltrona, com o corpo todo tremendo. —Ai, meu Deus, que horror! Minha filhinha!

A tia também começou a gritar e a chorar, num princípio de ataque histérico, e logo uma enfermeira entrou no quarto e a levou para fora, para aplicar-lhe um tranqüilizante.

—A senhora está bem? —perguntou a namorada à avó de Jorge.

—Estou, minha filha. Estou...

Jorge, até aquele momento, não havia se movido ou emitido qualquer som. Apenas olhava fixo para as próprias mãos, com a cabeça baixa e o rosto apagado.

—E você, está bem, meu amor?

—É mentira...

—O que é mentira, Jorge?

—Ela não morreu há alguns minutos. Ela morreu às duas da madrugada... Foi ela quem me acordou. O que eu senti foi o alívio que ela me passou.

—Você quer tomar alguma coisa?

—Não.

—Quer caminhar um pouco lá fora?

—Não.

E então ele levantou os olhos das mãos cruzadas, os olhos grandes, assustados, as pupilas inquietas, fixou-os nos olhos cansados da namorada, e pediu, com voz baixa e calma, como um menino bem comportado:

—Eu quero a minha mãe.

Um menino perdido no meio de uma multidão que acompanhava as atrações do circo. Ele olhava em volta e não conseguia encontrar a sua mãe entre todos aqueles rostos. E a moça que estava à sua frente, aquela moça loura que segurava a sua mão, só repetia que não poderia ajudá-lo.

—Eu quero a minha mãe. A minha mãe.


The State
Prima Donna

Behind, there was a line of black limousines with tinted windows hiding politicians and businessmen. The Military Police screamed: "We will crush all those implicated in the murder, one by one, until the last one."

A grande praça defronte ao Palácio da Justiça estava lotada de camelôs, operários em trânsito, militantes políticos que distribuíam panfletos e bandos de crianças de rua. Era uma tarde de mormaço, e eu acabara de enfrentar uma fila de duas horas numa agência bancária para descontar um cheque de pequeno valor, com o qual eu pretendia atravessar a semana. Comprei um cachorro-quente numa barraquinha da praça e, enquant o comia, observava o fluxo contínuo de desespero, ladroagem, sexualidade e revolta. Um pandemônio de sustos previsíveis e traumas coletivos.

Uma mulher negra e miúda, de corpo bem torneado, mas vestida como uma mendiga, subiu num banco da praça e começou a tirar a roupa. Respondendo aos assobios dos pivetes, ela gritava, num tom propositalmente vulgar, quase teatral, que "tinha o direito de vender o que era dela", enquanto a sua calcinha de elástico frouxo caía sozinha na altura dos joelhos. Ela rebolava e passava a mão entre as coxas, entre os pelos, rindo e cantando uma canção que eu jamais escutara antes, que dizia: "é com isto aqui que eu vou colar no grandão". A cena me despertou nojo, horror, e uma incontrolável excitação sexual, que fazia tremer as minhas pernas e as minhas mãos. Fiquei preocupado que alguém percebesse o meu tesão pela figura sórdida e pensei em me afastar dali quando notei que as mãos dos outros homens à minha volta também tremiam pelas mesmas razões.

Logo em seguida um grande tumulto tomou conta da praça. A multidão estava sendo rasgada por uma tropa de elite do Exército de Ocupação, com o Coronel Maddox à frente, de pé num carro de combate, com o uniforme de camuflagem, o rosto lambuzado de negro e o capacete ornado por farrapos que imitavam galhos e folhas. A tropa abria passagem para um cortejo fúnebre. Alguma autoridade nomeada pelos invasores havia sido assassinada por uma bomba da resistência organizada. O Estado, ferido, investia contra as massas, e nos ordenava que sentássemos no chão com as mãos na cabeça, sob a mira das metralhadoras. Enquanto isso, o Estado desfilava pela avenida nos seus melhores paramentos, afirmando de público a sua solidez e a sua vitalidade diante do povo submetido, como uma escola-de-samba às avessas.

O Cardeal vinha logo atrás das tropas, com um séquito de bispos com as suas mitras. Eram seguidos pelos comandantes das três Forças Armadas, indicados pelo Coronel Maddox, com seus uniformes verde, branco e azul cobertos de medalhas e galões. Atrás deles, uma fila de limusines pretas com os vidros escuros guardavam os políticos e os empresários. A Polícia Militar, usando carros com alto-falantes, gritava ameaçadoramente para a massa, com promessas de vingança do tipo: "nós vamos esmagar todos os implicados no atentado, um por um, até o último, para restabelecer a paz e a ordem no País".

Todos queriam abandonar aquela praça e sumir dalí, mas quem tentasse se levantar seria imediatamente fuzilado. Os carros de combate distribuíram-se em pontos estratégicos e o Coronel Maddox esperava que alguém lhe desse um pretexto para justificar um massacre exemplar. Ninguém poderia prever quanto tempo demoraria aquela demonstração do aparato do Estado. Eu estava exausto, e as costas me doíam muito naquela posição. Foi quando ouvi atrás de mim a voz da mulher negra e virei a cabeça. Ela ainda estava de pé no banco, com a calcinha arriada, passando a mão nos pentelhos e cantando: "é com isto aqui que eu vou colar no grandão". Ela era a única pessoa de pé em toda a multidão, e rebolava sensualmente como se nada estivesse acontecendo. "Vai ser fuzilada agora", pensei. Mas os soldados apenas a observavam, e nem ao menos ordenaram que descesse do banco ou que parasse de cantar.

O caixão da autoridade vitimada passou sobre um carro-de-combate, coberto pela bandeira nacional e pela bandeira do país invasor. O Coronel Maddox perfilou-se em continência e todos os outros militares o imitaram. A negra apertava os seios, como que para tirar leite, rebolava e apontava para os soldados estrangeiros quando cantava o trecho que dizia: "eu vou colar no grandão". Alguns soldados riam e zombavam dos colegas de tropa, como que insinuando "é a você que ela vai agarrar depois".

Aos poucos percebi que o Estado não apenas tolerava a exibição da mulher louca, mas na verdade nos oferecia aquele espetáculo como um complemento à exibição ostensiva de força das instituições. Ela era a nossa porta-voz, a nossa única voz. Ela nos representava, e era nela que nós deveríamos nos mirar para compreender o que havíamos nos tornado. O Coronel Maddox já a havia percebido, e ria também. Os policiais locais apenas sorriam constrangidos. Eu virei a cabeça para trás novamente, e a mulher estava de quatro, passando os dedos entre as nádegas, cantando cada vez mais alto o seu refrão. Eu me controlei para não chorar de raiva. Ninguém ali poderia fazê-la calar-se. Ela estava sendo sagrada a nossa rainha. A rainha daqueles homens sentados, imobilizados. Ela estava sendo coroada pelo nosso silêncio e pelas risadas dos estrangeiros.

A noite descia sobre a praça. O cortejo parecia interminável. O Coronel Maddox saltou do carro e caminhou entre a multidão inerte, passando em revista os vencidos, batendo com um rebenque de couro na calça do uniforme. Ele andava em direção à mulher, que continuava a sua dança pornográfica e demente. Os bispos a olhavam com reprovação, mas ninguém ousaria manifestar-se. O Coronel parou diante dela, rindo, e entregou-lhe o seu rebenque. Ela passou o rebenque por entre as coxas e o esfregou nos pelos pubianos para frente e para trás, excitadíssima, enquanto repetia: "é com isto aqui que eu vou colar no grandão". O Coronel Maddox deu uma gargalhada e bateu palmas, gritando: "Bravo! Bravo!" E toda a tropa repetiu o seu gesto. Eles nos olhavam como que tentando adivinhar quem seria o próximo a subir no banco. Eu fiquei vermelho de ódio e de vergonha. Mas não poderia prever então que com o tempo a resistência seria completamente aniquilada e que todos nós subiríamos naquele banco e cantaríamos mais ou menos a mesma música.


Profane
and
Poor
Uteri

Darcília read the note several times and only understood the message when she saw the two bills. She had never received money from a man, but she didn’t feel offended, not even sad. She thought she deserved it.

1 —Darcília

Darcília casou-se com um mecânico alcoólatra chamado Misael e logo depois teve um filho de um homem branco e gordo, de quarenta e cinco anos, dono da oficina mecânica, chamado Gaúcho. O filho era magrinho, de pele escura e cabelos lisos, e foi registrado com o sobrenome de Misael e o estranho primeiro nome de Wayrrington.

Logo após o nascimento de Wayrrington, Darcília abandonou Misael para sempre, e nem chegou a informar Gaúcho de que ele tivera um filho novo. Darcília amamentou Wayrrington em demasia, e seus peitos caíram e murcharam como bexigas vazias. As chances de sucesso de Darcília ficaram bastante reduzidas, apesar de seus dezessete anos de idade, mas ela não desanimou. Encontrou um figurão consertando o seu carro numa outra oficina mecânica (Darcília sentia-se em casa em qualquer oficina mecânica) e ofereceu-se ao figurão, chamado Maurício Ricardo, que a aceitou para as sete horas daquela mesma noite.

Darcília deixou o seu Wayrrington com sua mãe Ercília e esperou o figurão aparecer de carro em frente ao supermercado Rainha. Maurício Ricardo (que na verdade se chamava Sérgio Luís, mas sempre enganava o nome neste tipo de encontros) levou Darcília para o seu luxuoso apartamento na praia e só usou camisinha na primeira vez, porque só tinha uma em casa. Serviu-lhe um vinho vagabundo e perguntou-lhe: "Você nunca bebeu vinho francês na vida, não é? E que tal, hein?" Darcília estava encantada com o figurão, e achou-se a mulher de mais sorte no mundo. Para agradecer-lhe todo aquele luxo do jeito que ele gostaria, destrinchou-se em posições estrambólicas, ficou de quatro, frango-assado, espetinho e várias outras, aproveitando-se de seu corpo miúdo e flexível. Quando pediu que Maurício Ricardo lhe chupasse os peitos, ele recusou dizendo: "Que isso?! Vê se te enxerga..." E ela murmurou baixinho: "Você é maravilhoso, mas não me completou..."

Na manhã seguinte, Darcília acordou num pulo e percebeu que o apartamento estava vazio. Do seu lado, sobre a cama, um bilhete dizia: "Moça, tive que sair cedo. Deixei um presentinho na mesinha de cabeceira. Quando sair é só bater a porta. Até a próxima. M.R." Darcília leu várias vezes o bilhete e só o compreendeu inteiramente quando viu as duas notas, nem grandes nem pequenas, dobradas ao lado do abajur giratório. Ela nunca tinha recebido dinheiro de homem, mas não ficou ofendida, nem mesmo triste. Na verdade, achava que merecia.

Darcília comprou uma sandália de plástico transparente para sua mãe Ercília e uma mola de plástico para Wayrrington, que ele arrebentou em poucos minutos. De sua mãe, vaidosa com a sandália nova, Darcília ouviu um conselho definitivo: "Da próxima vez que sair com um figurão, fique de camiseta, esconda os peitinhos. Só tire tudo com a luz apagada e se ele já estiver bastante bêbado, ouviu bem?".

2 —Melissa

Maria Auxiliadora dos Santos não era nome de candidata a Miss Bum Bum 92. Foi o maquiador, Pinky, quem a batizou de Melissa Jackson na ante-véspera do desfile. A mãe de Melissa, Dona Zélia, costureira a domicílio, ex-Miss Paracambi, havia examinado discretamente as bundas das outras concorrentes e garantiu à filhinha que nenhuma tinha a bunda igual à dela, e que ela só não ganharia o Concurso se tivesse marmelada da grossa. Naquela noite, Melissa quase quebrou o pescoço de tanto virá-lo para olhar a própria bunda no espelho do armário do quarto. Melissa estava super-confiante no triunfo da sua bunda e nem desconfiava de que as suas concorrentes disputavam a marmelada aos tapas e que a perfeição parabólica da sua musculatura glútea era o que menos contava para o resultado final do Concurso.

Foi a sua nova amiga, Vanessa Bustamante, uma gordinha de nádegas fartas, que cobria o rosto espinhento com longos cabelos encaracolados e que não tinha a menor chance de sucesso na competição, quem lhe explicou que Melissa teria que arranjar um jeito de dar pro Billy naquela noite ainda, se não quisesse "morrer de véspera como um peru". Billy, ou Severino Ribeiro da Costa, era o organizador do Concurso Bum Bum 92, além do Garota Cidade Maravilhosa, do Pantera do Rio e do Garota Meyer Tênis Clube. Billy era moreno, magrinho, careca, de costeletas longas e só usava camisas com grandes estampas de flores, sempre abertas no peito. Todas as candidates precisavam comer o Billy para entrar na disputa, e de tanto precisarem da sua aprovação já começavam a desejá-lo fortemente. Todas já haviam passado pela sua cama pelo menos uma vez, e para Melissa aquela era a sua última chance de igualar-se às outras: "Graças a Deus a Vanessa abriu o jogo a tempo..."

Para chegar ao Billy, Melissa pediu a ajuda de Pinky, que por sua vez pediu a ajuda de Nestor, o argentino secretário de Billy, com quem Melissa jamais tinha falado antes. Nestor mostrou-se muito solícito e disse que compreendia a urgência da gatinha, mas que o Billy só chegaria às duas horas da manhã, e ainda não eram nove horas: "Tudo vai depender de você, mi querida. Vamos agora até o meu studio. Se você merecer, a las duas jo enfio você na cama do Billy. Pero só se você merecer..."

Melissa Jackson perdeu a virgindade mordendo o dedo indicador sobre uma esteira de palha no chão do studio do ex-guardador de carros e pequeno vendedor de maconha Nestor Artigas Muñoz, criado pela mãe solteira, também costureira a domicílio, num cortiço da cidade de Rosário.

Uma e meia da madrugada e Melissa já estava aflita. Tinha merecido ou não? Nestor cumpriria a promessa de tentar fazer com que Billy ainda transasse com ela naquela noite? "Gatinha, no fiques nerviosa, tá? Você já está quase merecendo. Para merecer cién por ciento jo necessito penetrar nessa tua bundinha de competición..." Melissa apavorou-se, mas cedeu. Pensou na fama, nos desfiles, nos autógrafos, na buate Hippopotamus, no patrocínio da Company, na capa da Playboy, numa ponta na novela da Globo e jura que não sentiu nada. Olhou o relógio, duas e cinco, e implorou ao argentino que a levasse até o quarto do Billy, antes que fosse tarde demais. Nestor pediu-lhe que esperasse um minuto, saiu do studio e voltou algum tempo depois dizendo que sentia muito mas que naquela noite não seria possível porque a Nadja Valéria e a Patrícia Evelyn já estavam na cama com o Billy, onde ficariam até a manhã seguinte.

Melissa vestiu a roupa, desesperada, correu para a rua e tomou um táxi para casa. Deitou na cama ao lado de Dona Zélia e chorou tão forte que acordou a mãe. "Amanhã é o seu dia. Sua bunda é linda, minha filha. Você não precisa ficar tão nervosa. Você vai ganhar, o resto é tudo bunda-mole. Eu vi com esses olhos que a terra há de comer..." "Não, mamãe, não! Eu não vou desfilar amanhã..." "Como não vai, minha filha?" "Eu não estou preparada, mamãe. Não fica tristinha, não. Olha, daqui a um mês tem o Concurso Garota Babilônia, que também é concurso de bum-bum, e aí eu prometo que eu vou começar a me preparar com bastante antecedência, pra não acontecer de novo o azar que aconteceu agora..."

3 —Rosilene

Era o dia da colheita nos restaurantes. Rosilene conferiu a sua lista. Só no Picanha de Ouro ela tinha uma pequena fortuna para recolher, por conta dos dez por cento das despesas daquele grupo de jovens turistas da Sicília que comeram até lagosta e só pediram vinhos caros. Mas era raro conseguir um grupo assim, e em geral Rosilene aparecia nos restaurantes acompanhada de apenas um turista, sempre um italiano. Que só tinha fome por ela mas que não poderia ficar em paz com a sua consciência européia comendo a noite toda uma brasileira desnutrida. Então Rosilene aproveitava e o conduzia a um dos restaurantes com os quais ela tinha "convênio" e sugeria os pratos mais caros, fazia o italiano beber bastante e o beijava na boca e no pescoço ardentemente na hora de conferir a conta.

Rosilene tinha dezenove anos, e há três, junto com todas as suas colegas mais bonitas do bairro de Maria da Graça, entrara no negócio de "turismo". No primeiro ano elas iam dançar todas em bando na discoteca Help e cobravam cem dólares pela transada de uma hora num motel ou duzentos dólares para passar a noite inteira. Somente no segundo ano de atividades turísticas Rosilene aprendeu que uma transada poderia lhe render bem mais que duzentos dólares se ela participasse dos "convênios" com os restaurantes.

Rosilene dividia o apartamento de Copacabana com Fátima Regina, uma mulata alta, de boca enorme e sensual, com quem nunca conversava por mais do que cinco minutos porque a companheira dormia e roncava o tempo todo que estava no apartamento. Fátima era desorganizada e, ao contrário de Rosilene, não cuidava muito da sua higiene corporal. Sua gaveta vivia aberta, e dentro dela mil papéis com telefones e nomes de homens: Massimo, Stefano, Roberto, Giovanni, Cesare, Enrico, Enzo, Paolo... Um dos motivos que levava Rosilene diariamente ao périplo de restaurantes e de motéis era juntar dinheiro para morar sozinha e livrar-se dos roncos de Fátima Regina. Mas o motivo principal era comprar roupas. Rosilene adorava comprar roupas novas. Gostava muito mais de comprá-las do que de usá-las depois, e muitas de suas roupas mais caras ela só vestira uma vez, na cabine fechada da butique.

Carlo Greco, seu namorado daquela noite, convidara Rosilene para ir ao ensaio de uma escola-de-samba que ele fazia questão de conhecer antes de voltar para a sua Milão. Era um grupo animado de italianos, e neste grupo havia Gino Restelli, um homem alto, louro, com um sorriso largo muito branco e os olhos azuis. Rosilene descobriu que Gino era dono de uma grande empresa de pescados congelados de Gênova. No tumulto do samba, com a quadra do Salgueiro lotada, Rosilene arranjou um jeito de "perder-se" de Carlo e fazer de Gino o seu novo par. O rapaz ficou encantado com a nova namorada, morena, alta, de olhos negros tão vivos, tão linda com sua camiseta branca quase transparente e sua calça de jeans claro rasgada no joelho como ditava a moda. Após algumas cervejas e alguns passos desajeitados de samba, Gino convidou-a para ir ao seu apartamento. Rosilene disse que estava com fome e que precisava comer alguma coisa antes. Gino sorriu de contentamento e assegurou que ele mesmo prepararia assim que chegasse um "Spaghetti Alla Carbonara" incomparável até mesmo na sua Itália. Disse, orgulhoso, que tinha trazido a massa e todos os outros ingredientes consigo, na sua mala. Rosilene torceu o nariz. Teria que abrir mão do convênio naquela noite se quisesse ficar com Gino. Mas pelo menos salvaria os seus duzentos dólares. "Você vai querer que eu fique a noite toda com você ou só uma horinha?" O rapaz pediu que ela repetisse a frase, e depois de três tentativas ele compreendeu a pergunta. Sorriu de novo, um sorriso de menino grande, e deu a entender que não só queria que ela ficasse com ele aquela noite toda como também todas as oito noites até a sua partida para a Itália. Disse isto e passou a mão de leve no seu rosto, confiante. Ao ouvir isto, o coração financeiro de Rosilene bateu forte: "Oito noites, caríssimo Gino, são mil e seicentos dólares, sendo que oitocentos você me dá hoje e os outros oitocentos na véspera da sua viagem, tá legal, amore?" Ele a olhou fixo, em silêncio, com o rosto sombrio, durante vários minutos, assimilando a proposta, e então, com o sangue lhe subindo às faces, levantou o punho fechado, gritando: "Una puttana! Porco dio maledetto..." e virou-lhe as costas, caminhando a passos largos para o seu carro. Bateu a porta e arrancou, deixando Rosilene sozinha de pé na calçada, assimilando a reação surpreendente do italiano decepcionado: "Quem ele pensa que eu sou? Um peixe congelado?".

Rosilene conseguiu uma carona de volta com o namorado de uma antiga coleguinha da Help, e chegou a Copacabana amargando o prejuízo. "Mais alguns idiotas como esse e eu vou ter que voltar a morar com mamãe no subúrbio..." Abriu a porta e encontrou o apartamento vazio, com roupas jogadas pelo chão da sala, a porta da geladeira aberta e a televisão ligada. Xingou Fátima Regina em pensamento e desabou sobre o sofá. Não tinha sono àquela hora, mas estava furiosa demais para sair novamente. Já dera aquela noitada como perdida. Tomou um tranqüilizante com uísque e largou-se estirada no sofá. Antes de pegar no sono, ainda viu pela televisão um velho poeta de cabelos longos, sentado diante de um piano negro, dizer num tom de voz rouco e embriagado: "A mulher... Ah, a mulher... É a coisa mais bonita que Deus já botou no mundo... A mulher é divina... O ventre da mulher é sagrado...".

The original titles of these short stories are respectively "Os Anos Frágeis", "A Prima-Dona do Estado", and "Mulheres Pobres com Úteros Profanos."

Júlio César Monteiro Martins, the author, was born in Niterói, in the Greater Rio, in 1955. He has published several short-story books: Torpalium, Sabe Quem Dançou?, A Oeste de Nada, As Forças Desarmadas, and Muamba. Monteiro Martins is also the author of three novels: Artérias e Becos, Bárbara, O Espaço Imaginário and a volume of essays: O Livro das Diretas. He is one of the founders of the Brazilian Green Party and from 1992 to 1994 worked as a lawyer for the Brazilian Center in Defense of Children's Rights. He taught literary creation at the Goddard College in the US and is now a professor in Italy, teaching literary creation and Brazilian literature in the University of Pisa. He also teaches Literary Creation in Narration in Florence, Lucca, and Pistoia. Martins is the founder of Sagarana School (http://www.sagarana.net). You can get in touch with him writing to jmontei@tin.it  


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