Brazil - BRAZZIL - "Leticia era Linda" by Adelaide Bouchardet Davis - In Portuguese - Brazilian Literature - Portuguese Language - Brazilian Books & Authors - Short Story - April 1999


Brazzil
April 1999
Brazilian Literature

UNPUBLISHED

Gorgeous,
But Who
Cares?

She hadn't changed much. All she had done was to become prettier. And she continued to flirt, to choose and to court; she liked and disliked all of those who appeared and disappeared, she tormented the life of other women who didn't have a chance as soon as she showed interest for the same boys.

Adelaide Bouchardet Davis

"Sua disposição atenciosa se tornara uma armadilha para ela agora. Ela estava, precisa-se admitir, algumas vezes de forma provocativa e desnecessária, desejando sobrecarregar-se com trabalhos manuais."

Thomas Hardy   in The Mayor of Casterbridge

A década de 60 chegara trazendo consigo os novos tempos. Tempos de Beatles. Tempos de enlatados americanos que enchiam a até então ingênua televisão brasileira. Os médicos faziam sucesso e os fãs não queriam perder nem um filme do Dr. Kildare ou do Ben Casey. As mocinhas morriam de amores pelos heróis de Rota 66, Martin Millner e George Maharis, e os rapazes sonhavam, um dia, ter um Corvette conversível igual ao deles. A televisão era ainda em preto-e-branco; estava saindo da fase dos teleteatros, dos programas humorísticos, para mergulhar de cabeça num novo mundo dublado e completamente fora da realidade que o país vivia então. A Praça é Nossa passava a competir com o Bonanza e Neide Aparecida tinha seus dias contados como garota-propaganda; os anúncios ao vivo começavam a morrer e as tais garotas eram dispensadas levando consigo o sorriso que vendia de tudo, até felicidade.

Os concursos de "Miss Brasil" e "Miss Universo" povoavam os sonhos das mulheres. Ieda Maria Vargas, Miss Brasil, se tornou "Miss Universo 1963", competindo com candidatas louras e lindas de todo o mundo. Morena, delicada, elegante, e com medidas perfeitas convenceu o júri do concurso que naquele ano as polegadas estavam todas no lugar certo e que a coroa tinha de ser do Brasil. Assentadas em frente à televisão, já de madrugada, vestidas em seus pijamas e camisolas de flanela, as mulheres brasileiras de todas as idades, cores, e credos, viram Norma Nolan, "Miss Universo 1962", a argentina "mignon", coroar a moça que viera do Rio Grande do Sul, em seu vestido longo azul e todo bordado de vidrilhos e canutilhos. As revistas O Cruzeiro, Fatos e Fotos e Manchete fizeram da nova "miss" um ídolo, dedicando a ela edições especiais, onde contavam toda a trajetória da moça. Até mesmo os cidadãos decentes e conservadores, e as senhoras mais puritanas, que antes criticavam qualquer moça que se atrevia a mostrar o corpo em coisas daquele tipo, começaram a sonhar com as filhas participando de um concurso de Miss. Imagina! poder ganhar aqueles prêmios que pareciam coisas de cinema—coisas daqueles americanos ricos—carros, jóias, casaco de pele e dinheiro vivo... e o melhor! a chance de viajar pelo mundo todo e, no final do reinado, conseguir um marido rico e importante, maridos como os de Marta Rocha, Terezinha Morango e Adalgisa Colombo. Os maiôs Catalina nunca venderam tanto; todas as mulheres queriam ter o "glamour" de Miss Universo. A maquiagem adquiriu nova importância na vida delas, principalmente o delineador que chegava para ficar, desenhando olhos de todas as formas e tamanhos. Tudo excitantemente novo!

As meninas se atreviam então a usar mini-saias e a mostrar um pouco mais as pernas—Mary Quant ditava a moda na Inglaterra e o resto do mundo copiava. Os rapazes, que antes usavam calças largas, confortáveis e comportadas o suficiente para não denunciar suas formas, agora as queriam justas mostrando que tinham "bundinhas" extremamente interessantes. Os colégios, a igreja, os pais, todos tentavam controlar os excessos mas não conseguiam muita coisa. Jovens revoltados com o "status quo" que os reprimira por tantos anos, deixavam os cabelos cobrirem as orelhas—para desespero total dos mais velhos e delírio pleno das menininhas de família—ou não! Parecia que o mundo se descontrolava geral! Elvis Presley, com todo aquele rebolado, cabelo de brilhantina, cantando baladas melosas, já não representava nenhum perigo. Os quatro ingleses, branquelos e irreverentes, com seus cabelos compridos, esses sim, passaram a ameaçar o sossego e os bons costumes das famílias conservadoras; continuavam cantando e mostrando do que era capaz a geração pós-Juventude Transviada—um verdadeiro delírio! Cantaram tanto que se transformaram no fenômeno do século e foram condecorados pela Rainha Elizabeth. Depois deles o mundo nunca mais seria o mesmo.

Mesmo com toda aquela revolução de costumes e cultura, com o país absorvendo o que havia de melhor—e pior—na Europa e nos Estados Unidos, a geração de compositores e poetas brasileiros resistia bravamente. Na acanhada capital das Minas Gerais, Pacífico Mascarenhas gravava, num compacto simples da gravadora Pampulha, o seu "vou descobrir onde mora esta garota colegial, que passa sempre dando bola dentro de um especial...". E, o país mergulhou numa revolução militar que mudaria a vida de todos os brasileiros.

Letícia, como a maioria daquelas "garotas colegiais", se entregava ao seu mundo de escola e festinhas, fazendo sucesso do seu jeito. Não se importava com problemas sociais, nem com o custo de vida. Não sabia porque o presidente Jânio Quadros estava renunciando, mas sabia que João Goulart, o vice-presidente que assumia o governo, vinha do Rio Grande do Sul, como Ieda Vargas, a Miss Universo—tinha visto aquele homem nas fotografias com a miss—e achava o "Che" Guevara um "pão". Não se preocupou com a revolução militar quando ela aconteceu; ditadura e presos políticos não faziam parte do seu mundo pequeno e inconsciente.

Nunca fora boa estudante, mas gostava de ir para o colégio—gostava dos amigos que fazia por lá. Usava o uniforme obrigatório do "Colégio Estadual"—saia cinza, blusa e meias brancas, gravata verde, sapatos e cinto marrons. Mas nada a fazia parecer "só mais uma" no meio das outras meninas. Era diferente de todas e tinha consciência disto.

Com quinze anos de idade não era alta e o corpo era como de qualquer adolescente—nada de excepcional. Os cabelos eram longos e lisos, de franja—e, por isso, seu apelido era "comanche". Algumas vezes, levantava parte deles e os amarrava no alto da cabeça deixando que o resto caísse solto, num descuido cuidado. O rosto era uma perfeição e todos diziam que Letícia era linda. A boca não existia outra igual, e os dentes, um pouco irregulares mas muito claros, completavam o sorriso que pairava sempre acima daquele queixo tão bem feito.

Gostava mesmo era de namorar e escolhia os rapazes mais cobiçados do colégio. Antônio Maurício, estava no terceiro científico—mais velho, mais disputado pelas menininhas do ginásio. Ele sabia que era bonito, que tinha charme, mas não era convencido; era um sujeito simpático e tinha um "jeep" velho, uma gracinha—ele e o "jeep"! Começou a namorar Letícia; no final do ano ele passou no vestibular de Economia; saiu do colégio e o namoro acabou, sem dramas ou choradeiras.

Osmani, estudante de Química, fazia um trabalho especial com o professor de Ângelo no laboratório do colégio e era o alvo das meninas mais assanhadinhas. Letícia fingiu que não achava nada de especial nele mas estava sempre passando pela porta do laboratório; o moço não resistiu ao sorriso dela e os dois começaram a namorar. Uns três meses se passaram e ela já não queria mais saber dele; dizia que o moço andava bem vestido demais, e só conversava sobre Texaco, petróleo e química—tudo muito chato! Osmani acabou o trabalho com o professor e foi logo esquecido.

Letícia passou a se encontrar com Carlos von Brenner, descendente de alemães, jogador de tênis no clube que os dois freqüentavam. Desta vez o namoro foi mais curto que de costume—a mãe de Carlos era muito aristocrática e pensava em coisa melhor para o louro germânico. Letícia não se importou quando ele lhe disse que não iriam namorar mais; ela já estava cansada daquela "velha chata e pedante", sempre controlando o filho e as amizades dele.

Os livros ficavam esquecidos no meio de tantos namoros. Depois de três sucessos na conquista de homens lindos, e de duas "bombas" na escola, teve de procurar um novo colégio. A mãe ficou desgostosa; a avó disse que não esperava outra coisa. Letícia foi morar com os tios em Volta Redonda; estudaria lá até que completasse o ginásio. Depois de dois anos estava pronta para voltar para casa. Conseguira o diploma, mesmo que entre provas e aulas tivesse namorado muitos daqueles fluminenses lindos que falavam "puxando o s".

Voltava para casa com uma novidade a mais no curriculum—tinha morado no Estado do Rio e conhecia uma parte do mundo que as outras meninas não conheciam. Não mudara muito, só tinha se tornado mais bonita. E continuou a flertar, escolher e namorar; gostava e desgostava de quantos iam aparecendo e desaparecendo, atormentava a vida das outras moças que perdiam suas chances se ela se interessava pelos mesmos rapazes.

Conheceu Ronaldo numa hora dançante em casa de Márcio. E, para espanto dela mesma, desta vez se apaixonara de verdade. Ronaldo falava arrastado, mas era um homem extremamente agradável e inteligente; não a amolava com conversas sobre resistência de materiais, tabela periódica e cálculo integral, apesar de ser mais um estudante de Engenharia na cidade. Ele era alegre, gostava de festas, e cantava muito bem. Formavam um par bonito e as famílias estavam satisfeitas com aquele namoro. "Até que enfim Letícia assentou a cabeça!" pensava e dizia a avó, mesmo que ainda um pouco descrente de que aquilo fosse durar.

No dia de seu aniversário, em novembro de 1972, Letícia estava apostando com as amigas que Ronaldo iria lhe pedir para ficarem noivos. Ele chegou à noite e uma festa estava preparada para os mais chegados. Tudo correu bem. No final da festa Ronaldo chamou a namorada para conversarem a sós. Ela se sentiu flutuando. Ele, vencendo todo o embaraço que a situação lhe trazia, disse que não podia continuar o namoro; estava preocupado com os estudos, com a carreira, e não queria assumir nenhum compromisso sério naquela fase da sua vida. Mais tarde, quem sabe... Letícia não chorou, não pediu que ele repensasse a decisão; ouviu calada o que ele dizia; no final daquele discurso cheio de explicações ela simplesmente lhe deu boa noite e entrou em casa. Ouviu quando ele fechou o portão. No dia seguinte comunicou o rompimento à família e nunca mais tocou no assunto com ninguém.

Seis meses depois, ela ficava noiva de Paulo com quem começara um namoro, tão logo Ronaldo saíra de sua vida. A avó ficou contra aquele relacionamento desde o princípio. Paulo e Letícia eram primos—de terceiro grau, mas ainda primos—e isto não poderia dar certo. Paulo era um intelectual. Tinha um bom emprego, era inteligente e parecia gostar muito de Letícia, mas ninguém acreditava que ela o amasse de verdade. Ele era a antítese dos homens que Letícia sempre escolhera. Não era bonito e já estava ficando careca, mesmo que fosse ainda muito jovem; era quieto e educado. Tinha três irmãos que, como a mãe e o pai, aprovavam plenamente o casamento deles. A avó tentou convencer a neta que ela estava fazendo uma grande bobagem, que deveria esperar mais; dizia sempre "menina, casamento não é coisa para se brincar, é muito sério; um erro pode estragar o resto da sua vida!". Mas Letícia não aceitava nenhuma ponderação; dizia que estava decidida e que se casaria com Paulo de qualquer jeito. Será que ninguém entendia que todas as suas amigas estavam se casando e ela continuava solteira?! Ela não deixaria que aquilo acontecesse! E, enquanto a avó reclamava, eles saíam praticamente todas as noites, com um grupo de amigos, também intelectuais, e todos conversavam, sobre música clássica, cinema e livros de Proust, Kafka, Camus e Sartre. Aquele era um mundo novo que ela estava disposta a tolerar—quem sabe precisava mesmo ter um pouco mais de cultura!

Na noite do noivado Letícia era toda sorrisos. A festa trouxe os amigos e todos se divertiram muito. O gato da casa, completamente assustado com aquele movimento, entrava e saía pela janela da sala passando por cima dos convidados que estavam assentados no sofá. Algumas crianças corriam pela casa sem dar sossego a ninguém, e os mais velhos conversavam animadamente a um canto. Muitos canapés e drinques depois, os convidados se foram e a família foi dormir, exausta. Quando se acomodava em sua cama, Letícia ouviu uma voz de homem cantando. As irmãs correram para a janela e a chamaram rápido porque a serenata era para ela; com cuidado abriu um cantinho da cortina e olhou para baixo—Ronaldo estava lá com um amigo; os dois tocavam violão e ele cantava. Ela se virou sem fazer nenhum comentário com as outras, voltou para a cama e cobriu a cabeça com o travesseiro.

O casamento, o primeiro entre as irmãs, foi celebrado com toda a pompa e circunstância. Durante a semana que precedeu à festa foram chegando presentes—cristais, prataria, louças de excelente qualidade, faqueiros—todos vinham em caixas embrulhadas em papéis elegantes, cheias de laços, e acompanhadas de cartões; tudo era exposto convenientemente sobre a cama da noiva, conforme mandava a tradição. Além dos pacotes chegavam também gordos cheques que eram muito bem-vindos e separados cuidadosamente. A cerimônia civil foi em casa, seguida de aperitivos e hors d'oeuvres; tudo muito chic, com direito a notinha nas colunas sociais. Várias fotos, feitas por um profissional renomado, registraram o acontecimento. No dia seguinte, outras fotos foram tiradas pelo mesmo fotógrafo, antes da cerimônia religiosa. Letícia estava ainda mais bonita, penteada e maquiada. O vestido branco era uma perfeição; feito pela famosa D. Alba, costureira da alta sociedade, era completado por um longo véu de renda bordada. A noiva posou gloriosa—de perfil refletido no espelho de seu quarto, junto às flores que haviam chegado pela manhã, um close especial de seu rosto junto ao de sua mãe, e mais uma infinidade de outras poses tradicionais. As irmãs também posaram para a posteridade—um luxo!

Chegara, finalmente, a hora do grande evento. A igreja estava cheia de flores, tapete vermelho que ia da entrada até o altar; o padre conferia os últimos detalhes de seus trajes e fazia recomendações a seu ajudante. A irmã mais nova era a dama de honra; em seu vestido longo de jersey amarelo, tendo no alto da cabeça um trabalhado coque de mechas cheio de fitas, tentava segurar com classe o buquê de flores que completava seu visual. Um sem-número de padrinhos e madrinhas, enfeitados em suas roupas feitas especialmente para a festa, concorriam por um lugar junto ao altar; os demais convidados se apertavam como podiam nos bancos da igreja e em suas roupas e sapatos novos. Todos olharam ao mesmo tempo quando o órgão começou a tocar a "Marcha Nupcial." Letícia entrou sorrindo gloriosa na pequena igreja, levada pelo braço do irmão. Era a mesma moça linda de sempre—os dentes, um pouco irregulares mas muito claros, completavam o sorriso que continuava pairando acima daquele queixo tão bem feito.

A lua-de-mel foi em Campos do Jordão—muito em moda àquela época. Quando o casal voltou, todos os presentes estavam organizados e prontos para serem despachados para o Rio de Janeiro. Paulo e Letícia estavam se mudando para a Cidade Maravilhosa. Ele começaria a trabalhar em uma nova companhia dentro de quinze dias; ela realizaria o sonho de viver perto do mar.

O pequeno apartamento ficava num prédio muito alto em Copacabana, próximo à Avenida Atlântica. Paulo saía para trabalhar de manhã e Letícia ia para a praia. E assim se passaram os dois primeiros meses de casamento, um tempo de adaptação do casal ao novo lugar, aos novos amigos, à nova vida. Rafael, irmão de Paulo, também morava e trabalhava no Rio; ele e a mulher ajudaram muito naquela fase de começo de vida.

Depois de certo tempo Letícia andava notando que Paulo se tornara taciturno, esquisito. Uma noite, já muito preocupada, tentou conversar com o marido e saber o que estava acontecendo. Ele ficou agitado e começou a dizer coisas estranhas; falava alto, repetindo todo o tempo que a vida não tinha nenhum sentido, que ninguém precisava estar no mundo, que tudo era ridículo. Era um outro homem. Assustada com o rumo que as coisas estavam tomando, Letícia foi ao quarto e telefonou para o cunhado. Pediu a ele que viesse logo porque Paulo não estava bem. Voltou à sala e destrancou a porta. O marido, de pé junto à janela, continuava a falar sobre a inconsistência da vida. Caminhava, gesticulava, conversava sozinho. Falava em Buñuel, em Godard, dizia que precisava telefonar para Elia Kazan. De vez em quando ria alto. Letícia não entendia o que estava acontecendo com aquele homem calmo e gentil que ela conhecia. Subitamente ele se sentou e ficou muito quieto. Ficou assim por um tempo; depois levantou-se da cadeira devagar e caminhou outra vez em direção à janela. Letícia também se levantou e começou a chamar de mansinho por ele. As cortinas balançavam com o ar da noite que estava fresca lá fora, e muito cheia de estrelas. Paulo parou e ficou olhando para elas. Lentamente virou-se para Letícia, como se só então a estivesse vendo ali, e disse calmo "será um vôo tranqüilo e rápido, tenho certeza. Não terei tempo de me despedir de ninguém. Bergman me perdoará por isto" e olhou novamente para o escuro com pontos de luz. A mulher só teve tempo para se agarrar às suas pernas, antes que ele desse mais um passo.

Letícia gritava por socorro quando Rafael entrou correndo no apartamento e dominou o irmão que, aos poucos, foi ficando quieto. Rafael o levou para a cama e lhe deu um comprimido e água para que ele bebesse. Passados uns dez minutos Paulo relaxou e dormiu.

Letícia ficou na sala, quieta, olhando para o nada. O cunhado veio se assentar perto dela. Pegou-lhe a mão e disse devagar "nós deveríamos ter conversado com você antes. Não tivemos coragem. O Paulo é psicótico-maníaco-depressivo."

Do que Rafael estava falando? O que significava aquilo? De quem ele estava falando? Devagar o cunhado explicou a ela a gravidade da doença do irmão. Letícia não disse nada a ninguém. Não contou à mãe, não falou com a avó, escondeu tudo das irmãs. Sabia que nunca amara Paulo e não o amaria jamais. Agora sentia pena dele, sentia pena de si mesma. Não podia voltar atrás na sua decisão—estava grávida. Encontraria um jeito qualquer de ser feliz.

Voltaram a morar em Belo Horizonte. Paulo trabalhava em outra empresa, na assessoria do diretor de marketing e relações públicas. Letícia preparava o enxoval da criança, ajudada pela avó, que costurava cueros e roupinhas de cama, e pela a mãe, que bordava camisinhas de pagão, tricotava mantas e fazia planos para o futuro do neto.

O bebê nasceu prematuro, depois de uma gravidez complicada. Um menino lindo, mas tão miudinho que a cabeça cabia na palma da mão de sua bisavó. Deram a ele o nome de Tito, em homenagem ao avô paterno. Cercado de cuidados e atenções de toda a família, a criança conseguiu passar pelos primeiros meses de vida.

Quando o filho estava com dois anos—um tourinho forte e saudável—e a situação financeira bem equilibrada, Paulo e Letícia fizeram uma viagem a França. Deixaram a criança com a avó materna e se foram por vinte dias. O marido a levou a Cannes onde acontecia o famoso festival de cinema. Ele fora mandado, pelo jornal para o qual escrevia críticas de cinema, para cobrir o evento. Letícia estava encantada com todo aquele clima de festa e fantasia. O tempo todo via passar os astros e estrelas que ela já conhecia na tela; numa manhã, estava na piscina do hotel quando viu, sem poder acreditar, Jean Sorel, o ator francês que fazia o marido de Catherine Deneuve em Belle de Jour; o homem chegou para um banho de sol e atraiu a atenção de todas as mulheres que o acharam lindo demais! Depois de uns dias em Paris e uma visita ao irmão dela, que nesta época morava na França, voltaram para o Brasil.

Tito estava com três anos quando nasceu sua irmã Iêda. A menina não tinha sido planejada e a mãe pensou em fazer um aborto quando soube que estava grávida novamente. Tivera tanto trabalho com o menino, passara tantas noites em claro preocupada com sua saúde, que não estava disposta a aturar tudo aquilo novamente. Com raiva daquela gravidez indesejada, não se cuidou como da primeira vez, não preparou o enxoval—aproveitaria o que fizera para Tito—não pensou em nenhum nome para a criança. Fumava muito, mesmo com o médico a lhe dizer todo o tempo que aquilo prejudicaria o bebê, e gostava de tomar um drinque todas as noites antes do jantar. A menina nasceu chorando escandalosamente, e chorou por muito tempo tornando a vida da mãe um verdadeiro calvário.

Agora tudo se resumia em crianças, babás, sopinhas, fraldas, escolinha. Uma droga! Paulo se tratava dos problemas psicológicos; tinha terapia duas vezes por semana e raramente as crises se manifestavam—nenhuma outra como aquela que tivera no Rio. As crianças cresciam e não mostravam nenhum sinal de terem herdado a doença do pai.

Depois do segundo aniversário de Iêda, Letícia ficou grávida novamente—desta vez, sem nenhum sentimento extremo de amor ou de raiva. Dulce nasceu quieta, séria, pronta para passar assim o resto de sua vida. Dormia muito e era um bebê acomodado. Não reclamava nem mesmo quando ficava molhada mais tempo do que o desejável. Aquela criança não foi o centro de atenções da casa; logo depois do seu nascimento a mãe tivera uma infecção renal séria e não pôde se dedicar muito ao bebê.

Letícia nunca trabalhara fora de casa antes—não era uma pessoa preparada, não tinha nenhuma aptidão para estar numa empresa. Apareceram algumas poucas oportunidades para as quais talvez ela pudesse se oferecer, mas o marido dizia sempre que "mulher de Paulo C. T. Machado não precisa de trabalhar!". Agora, com as três crianças ainda pequenas, não via muito sentido em sair de casa e deixá-las o dia todo por conta da babá, mesmo que esta fosse um anjo e tratasse as crianças como mãe. Os poucos pensamentos que tivera a respeito disso foram esquecidos. Assim, sua vida se resumia em cuidar da casa, das roupas e da comida do marido, levar as crianças para o clube, para a escola, para a cama. Nas férias, a família fazia ótimas viagens, hospedando-se em hotéis cinco estrelas e conhecendo lugares incríveis por todo o país. Paulo gostava das crianças e se revelava um bom pai para elas.

Entretanto, seu relacionamento com a mulher esfriara há muito tempo. Letícia, que nunca tivera características de verdadeira amante, com o tempo foi ficando cada dia mais fria. Fazer amor não era uma das suas atividades preferidas da noite—ou do dia! Sempre fora reservada e arredia; muitas vezes, sexo lhe dava um certo nojo. Parecia resignada com aquilo e não se importava com o que o marido pudesse pensar.

Paulo via a mulher envelhecendo e engordando ao seu lado. Não sentia nada mais por ela; apenas dependência de seus cuidados—ela nunca se esquecia de lhe dar os remédios, sempre descascava suas frutas, e cuidava de sua dieta—sua doença cardíaca, diagnosticada alguns anos atrás, obrigava-o a controlar qualquer abuso. E ele se sufocava naquela vida sem graça e sem sentido—aniversário das crianças três vezes por ano, viagem de férias com a família, Natal com os pais, os irmãos, a sogra e as cunhadas. Parecia mais velho e suas depressões voltaram a atormentá-lo com frequência. Quando chegava em casa as crianças já tinham ido para a cama; punha para tocar uma música clássica e ficava na sala escura assentado e bebendo suas doses de uísque; a mulher lhe fazia companhia, quieta, mas impaciente por não poder assistir a novela. Vida besta! Conheceu outras mulheres, se interessou por elas, viajou com elas, foi infiel à mulher com elas. Precisava fazer sexo com alguém, queria sentir o cheiro e o gosto de uma mulher na cama, queria o prazer de sentir prazer. Não se incomodava com o fato de que Letícia pudesse descobrir qualquer uma de suas aventuras. Era importante para ele sentir que ainda estava vivo, que ainda gostava de ter orgasmo, que ainda podia ter uma mulher inteira para satisfazer seus desejos de homem.

Letícia, por sua vez, se importava cada vez menos com o que se passava com o marido. Continuava tocando sua vida, carregando o fardo da sua existência, como carregava para a piscina as crianças e as sacolas de roupas de banho. No clube ficava sempre com as irmãs que intrigadas perguntavam quem era a mulher que passava todo o tempo conversando com Paulo, um pouco afastados do grupo. Ela respondia apenas "deve ser uma das namoradas dele". Todas se espantavam perguntando ao mesmo tempo "e você não vai fazer nada a respeito?!". Com a indiferença de um boi pela mosca que pousa na ponta de sua orelha, ela dizia "fazer o quê?! é a vida dele!". E mudava de assunto com naturalidade, ou saía com uma das crianças para comprar sorvete. Quando Paulo recebia a visita de uma de suas "amigas", Letícia preparava um tira-gosto, alguma bebida, e deixava tudo na sala para eles se servirem; saía fechando a porta, para que não fossem incomodados.

Tudo estava tão mudado naquelas duas vidas! Letícia já não era mais a sombra da moça linda que fora antes; os dentes, ainda irregulares mas muito claros, já não eram notados porque não havia mais um sorriso pairando sobre aquele queixo que agora se perdia no meio de um rosto flácido, sem vida, gordo, contornado por um cabelo curto e ralo que, de vez em quando era pintado de vermelho. Tornou-se uma mulher feia, maltratada pelo tempo, sem muitas opções, sem muitas chances. Paulo continuava com seu trabalho e passava horas conversando com os amigos quando estes vinham à sua casa.

Após quatorze anos de casamento, o casal se separou. Paulo disse a Letícia que estava saindo de casa para viver com Tânia. A mulher ficou um pouco surpresa; afinal Tânia não passava de uma menina, aspirante a atriz de teatro, que dormia com qualquer um que pudesse lhe dar alguma oportunidade na vida. Talvez a idiota pensasse que Paulo fosse rico e isso seria unir o útil ao agradável—ele era bem relacionado no meio artístico e essa era a chance que aquela vagabunda esperava. Como por instinto Letícia repetiu o nome "Tânia!" E Paulo, tentando se explicar disse com voz alterada "É, Tânia! Eu estou cansado desta vida estúpida que tenho com você! Eu quero mais, e tenho certeza que Tânia pode me dar o que procuro! Ela é nova, magra, bonita, inteligente e interessante. Vou começar a vida de novo e tentar não repetir esta droga toda que está me matando aos poucos! Não quero me destruir neste relacionamento doente, pobre e feio!". Disse que se mudaria no dia seguinte para um hotel. Cuidariam do divórcio mais tarde. Letícia ouviu em silêncio. Não discutiu, não chorou, não pediu que ele ficasse.

Depois que o marido foi para o quarto, ela ficou sozinha na sala fria e escura. Pensou nos tempos do Colégio Estadual. Em sua memória gasta podia ver os dias que não voltariam nunca mais. Lembrou-se dos poemas que escreveu para George Maharis. Os antigos namorados desfilavam por sua mente. Lembrou-se de Antônio Maurício—soube que ele havia morrido no ano anterior num desastre de carro perto de Nova Lima. Lembrou-se da velha pedante controlando a vida de Carlos. Pensou em Ronaldo e na serenata—por que ele fizera aquilo? Vira-o no clube com a mulher e suas duas crianças—era ainda um homem muito bonito. Pensou em Cannes, em Jean Sorel, na viagem a Paris. Tudo tão longe, tão apagado! Dormiu ali mesmo, no meio dos seus fantasmas.

Paulo foi-se embora. Ela estava agora só com as crianças. Precisava consertar aquela vida estragada. Não sabia como fazer isso—nunca cuidara de nada que não fosse filho e casa, marido e comida. Tentou arranjar um emprego mas não teve muito sucesso. Mudou-se para outro apartamento com as crianças; Paulo pagava as despesas e ela manobrava, como podia, o pouco dinheiro que ele lhe dava. A situação era muito desconfortável. Morar em casa alugada nunca fora bom, mas não havia outra alternativa. Quando voltara do Rio para morar novamente em Belo Horizonte, tinha um apartamento que ela comprara com o dinheiro que o pai tinha lhe deixado de herança. Alguns anos depois, o marido hipotecara o imóvel e, com o dinheiro, fizera um filme de curta metragem que não passou de um grande fracasso. Perderam o apartamento pois a hipoteca não pôde ser paga. Paulo sempre dizia que não queria morar em gaiola; só compraria um outro imóvel quando encontrasse a casa de seus sonhos. Talvez ele não tivesse sonhado com nenhuma porque nunca comprou outro lugar para morarem. Agora, ela continuava sem um canto seu, com as crianças e a incômoda situação de ter que pedir mais dinheiro para o marido quando as coisas se complicavam.

Continuavam amigos—afinal já estavam tão acostumados um com o outro... e havia as crianças. Paulo lhe telefonara três semanas após a separação pedindo ajuda. Ele alugara um apartamento e queria que estivesse limpo e organizado antes da mudança. Tânia chegaria de viagem na semana seguinte e os dois iriam para lá. Sem o mínimo escrúpulo pediu a Letícia que levasse a empregada e dessem um jeito em tudo para ele. A mulher concordou. Conversou com Cida sobre um pagamento extra pelo serviço. A empregada de tantos anos ficou indignada e respondeu "D. Letícia, por nenhum dinheiro do mundo eu faria isto! Me admiro da senhora concordar com uma imundície dessa! A senhora parece que ficou maluca! Eu nunca vi ninguém se rebaixar tanto! Arrumar a casa, limpar tudo, para aquela vagabunda entrar com o "seu" Paulo! É muita sem-vergonhice! A senhora tinha era de dar um tiro na cara daqueles dois e não deixar aquele homem fazer da senhora tapete pra ele desfilar com amante! Desculpe o desabafo mas eu não posso fingir que isto `tá certo! Não conta comigo!" A mulher estava furiosa e preparava com raiva incontida a massa de pão-de-queijo. Letícia não discutiu.

No dia seguinte, pegou a chave que Paulo havia deixado na portaria do hotel. Chegou cedo ao prédio pequeno que ficava na Serra. Abriu a porta da frente do apartamento e se espantou com a sujeira do lugar—aquilo significava um dia inteiro de trabalho duro. Pôs mãos à obra e, perdida entre vassoura, rodo, balde, panos e produtos de limpeza, não viu o tempo passar. Eram sete horas da noite quando chegou exausta em casa. Ligou para o marido e disse que tudo estava pronto—ele disse que ela era uma boa mulher. Depois, sem muito ânimo, conversou com as crianças que se preparavam para dormir e perguntou a Cida se estava tudo bem—a mulher respondeu com ar de reprovação "poderia estar melhor!".

Letícia foi para o banheiro e se olhou no espelho—sentiu vergonha. Tomou um banho, vestiu um roupão e foi para a cozinha; preparou um prato e se sentou à mesa da copa. Comeu alguma coisa em silêncio e depois entregou o prato a Cida que estava terminando de lavar algumas coisas na pia. Foi para a sala, ligou o rádio baixinho e, no escuro, assentou-se na poltrona em frente à janela aberta. Encolheu as pernas, recostou a cabeça e ficou lá quieta. Sentiu uma tristeza profunda e chorou. 

Já havia se passado um ano desde a separação. Letícia recuperou um pouco da sua antiga imagem, relacionou-se com outros homens sem muito sucesso—só um pouco mais de sofrimento. Tentava ignorar os problemas emocionais dos filhos que se somavam aos outros tantos problemas que ela não conseguia resolver.

Paulo continuava a morar com a amante. O princípio do relacionamento fora excepcional. Mesmo sem querer fazer comparações, ele não poderia deixar de sentir como Letícia e Tânia eram tão diferentes em tudo, mas principalmente na cama. Enquanto a mulher era fria e desinteressada, a amante lhe mostrava o paraíso; enquanto a mulher sentia nojo de sexo, a amante se deliciava com aquele jogo sem fim.

Depois de pouco tempo tudo foi se modificando. Tânia descobriu rapidamente que ele não era rico e que seus conhecimentos no meio artístico não eram suficientes para fazer dela uma estrela. Ainda tão jovem ela não conseguia se sujeitar aos hábitos de um homem mais velho e cheio de manias; era impossível conviver com aquele intelectual, que não gostava de dançar, que gostava de ficar em casa vendo vídeos de filmes antigos e recebendo amigos que, como ele, só pensavam em cinema, música clássica, livros complicadíssimos e artes plásticas. Ela agora passava mais tempo com os amigos do teatro. Inventando desculpas ridículas saía sempre à noite com homens mais velhos e muito ricos, tentando, de alguma forma, buscar uma nova oportunidade; abandonava Paulo aos seus pensamentos e sonhos com o passado. Ele sabia que a amante não lhe era fiel mas preferia fingir que estava tudo bem para continuar a tê-la ao seu lado. Gostava de olhar para ela, ter na cama aquele corpo lindo, acariciar-lhe os cabelos quando faziam amor; ela lhe dava prazer, ela era sua naqueles poucos momentos em que ele se esquecia de que tudo não passava de pura ilusão, uma mera fantasia que ele cultivava como se fosse a garantia de sua existência. Constantemente, nos finais de semana, Tânia viajava com o grupo de teatro para alguma apresentação em cidades do Interior do Estado. Naqueles dias a solidão o torturava; nem sempre os amigos estavam disponíveis para um bate-papo e ele andava muito desanimado para sair de casa e fazer algum outro programa. Nesses momentos ligava para Letícia, com a desculpa de saber como estavam as crianças. A mulher era paciente e conversava com ele, perguntando de sua saúde e do trabalho; ela continuava a ler suas críticas de cinema e comentava sobre algumas.

Num sábado à tarde Paulo telefonou para Letícia e disse que estava sozinho e não se sentia bem; perguntou se seria muito difícil para ela ir ao apartamento. A ex-mulher disse que não achava conveniente; ele insistiu, quase implorando e, finalmente, ela cedeu. Avisou Cida que estava saindo por umas duas horas, mas talvez voltasse antes. Tomou um táxi e foi para a casa de Paulo. Quando entrou sentiu o coração apertado. O ex-marido, ainda de pijamas, parecia muito abatido e doente; o lugar estava uma completa desorganização com jornais e livros espalhados por todo lado; xícaras e copos sujos se misturavam sobre a mesinha de centro na sala. Um pouco sem graça ele lhe disse "Tânia anda meio sem tempo para estas coisas e você sabe como eu sou ..." Letícia não comentou nada; apenas juntou os jornais, separou os livros num canto, levou a louça suja para a cozinha e, rapidamente, limpou como pôde toda aquela sujeira; levou o lixo para fora porque o apartamento estava com um cheiro muito ruim. Enquanto arrumava, ouvia o marido falando sem muita convicção "você não precisa fazer isto, Letícia! Na segunda-feira Tânia arranja alguém que dê um jeito em tudo. Sabe, não é sempre que fica tanta bagunça acumulada, mas ultimamente as coisas andam meio fora de controle nesta casa". Quando o apartamento finalmente já estava mais apresentável, Letícia voltou à sala e se recostou no sofá. Sentiu muita pena daquele homem parecendo um velho sentado à sua frente. Os pensamentos se atravessavam em sua cabeça e se resumiam em uma pergunta sem resposta "por quê?!" Depois de um tempo em silêncio Paulo começou a falar sobre coisas do passado perguntando se ela também se lembrava; a mulher, envolvida em repentina tristeza apenas balançava a cabeça dizendo que sim. Aqueles anos tinham ficado esquecidos no tempo e pareciam tão longe, tão apagados. Ele falou em Cannes, falou sobre filmes que viram juntos, falou no tempo curto de namoro que tiveram, lembrou-se dos detalhes da lua-de-mel em Campos do Jordão. Estava cansado quando parou de falar. Letícia perguntou se ele queria comer ou beber alguma coisa; e saiu para preparar uma fruta que ele comeu com gosto, mas sentindo vergonha daquele prazer que apenas a mulher era capaz de lhe dar. Ela disse que tinha de voltar para casa; ia pegar as crianças na casa de um amiguinho que estava aniversariando. Paulo se levantou com dificuldade e pegou-lhe as mãos. Num gesto que ficou guardado por dezessete anos ele as beijou em silêncio. Letícia o abraçou com o carinho esquecido por tanto tempo e saiu sem olhar para trás. Ele ficou lá, de pé junto à porta e deixou que um choro reprimido viesse lavar sua dor.

Com trinta e sete anos Paulo teve um derrame que o deixou com seqüelas sérias. Via os filhos raramente—as crianças não gostavam de Tânia e evitavam ir ao apartamento do pai. As únicas visitas que recebia eram o Dr. Luís, o cardiologista, e os poucos amigos que ainda conseguiam engolir a raiva que sentiam de Tânia. Esta não mudara em nada seus hábitos e continuava saindo com frequência, deixando o amante em companhia de alguém que estivesse disponível.

Letícia estava em uma praia do Espírito Santo, com os filhos e alguns amigos, quando recebeu a notícia da morte de Paulo; morrera sozinho assistindo no vídeo o filme Casablanca—sempre gostou de ver Ingrid Bergman e Humphrey Bogart naquele clássico. A mulher voltou com as crianças para o enterro. Chegaram no final da tarde e foram direto para o local do velório. Tânia estava lá ao lado do caixão—parecia a viúva. Uma longa noite de vigília. A amante saiu para ir em casa descansar um pouco e tomar um banho. A mulher levou as crianças para a casa de uma das tias para que se recuperassem da viagem e do susto. O enterro foi no dia seguinte. Logo pela manhã Tânia voltava ao local do velório, vestida em um terno branco muito elegante, cabelo arrumado em trança e perfeitamente maquiada. Letícia estava com um vestido comum que lhe acentuava o peso que a idade e baixa auto-estima pareciam conservar; os cabelos, agora compridos até os ombros, estavam soltos e o rosto não trazia senão uma leve cor de batom nos lábios pálidos. Na hora do enterro, Tânia leu um poema de Pablo Neruda antes de lançar o livro sobre o caixão e dizer em tom dramático "não vou esquecer você, meu amor!"; apanhou depois um punhado de terra que jogou sobre o livro. Letícia assistiu a tudo sem se manifestar; de vez em quando, enxugava com discrição o canto do olho. 

O marido não deixara nada, além de uma apólice de seguros que estava no nome de Letícia, a esposa, e de Tânia que ele caracterizava como "filha adotiva". Nenhuma das duas recebeu o prêmio—o pagamento mensal da apólice não havia sido feito. Tânia se mudou do apartamento levando o que lhe interessava. Letícia cuidou do que sobrara—fotos, livros, discos com trilhas sonoras de filmes antigos, vídeos de filmes famosos. Organizou tudo em caixas e, antes de sair, olhou para o apartamento vazio sentindo uma grande pena de sua própria vida. Fechou a porta devagar; trancou lá dentro um mundo de mágoas e entregou a chave ao proprietário.

A vida começava de novo. Letícia conseguiu um emprego como secretária. Todo o medo acumulado não fora capaz de paralisar aquela caricatura de mulher. Morava então com a irmã mais nova, solteira e com um filho—dividiam as despesas e a solidão. Não era o melhor arranjo do mundo tolerar e conviver com aquela outra mulher amarga e desiludida, mas era a solução mais imediata para ela. As crianças continuavam a ir ao colégio e a carregar consigo problemas dos quais não tinham nenhuma culpa. Os anos 80 se acabavam, dolorosos, levando com eles a esperança daquelas pessoas serem realmente felizes um dia.

O ano de 1990 trazia a nova década e Letícia apostava em novas chances para a vida que ela carregara com dificuldade durante tanto tempo. Era quinta-feira e o dia estava péssimo; uma chuva persistente e um céu escuro anunciavam que a enchente de São José naquele mês de março poderia ser um desastre. O ônibus, cheio de gente e sombrinhas que pingavam todo o tempo, deixou-a tarde na cidade; o trânsito estava péssimo e todo mundo impaciente logo de manhã. Depois de empurrões e pedidos de licença, conseguiu finalmente sair daquela lata de sardinha. Abriu a sombrinha que já não tinha muita função porque ela estava completamente molhada e seus pés encharcados. Tinha de andar depressa para não chegar atrasada à empresa.

Um Mercedes Benz branco parou no sinal de trânsito quando ela atravessava a avenida. A buzina do carro elegante chamou sua atenção. Instintivamente olhou para a moça que dirigia o carro. Era Tânia que, muito bem maquiada e elegante, atrás do limpador de parabrisa, acenava para ela com um sorriso. O vidro do carro foi abaixado alguns centímetros e Letícia pôde ouvir a outra dizendo alto: "Como vão as crianças?!" Surpresa e confusa, Letícia seguiu seu caminho sem responder nada. De pé do outro lado da avenida olhou mais uma vez para o carro. O sinal ficou verde e o Mercedes partiu devagar.

Letícia trocou a sombrinha de mão, passou a bolsa para o outro ombro; enxugou com um lenço o rosto molhado, e continuou seu caminho em direção ao trabalho.

The original title of this unpublished short story is "Todos Diziam que Letícia Era Linda. E Daí?!" Its author, Adelaide Bouchardet Davis, born in Visconde do Rio Branco, Minas Gerais state, is a writer and professor of Portuguese at Denver University, Colorado, USA. You can reach her via e-mail: addavis@du.edu 

Copyright © Adelaide Bouchardet Davis


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