Brazil - BRAZZIL - Short story "Who Killed Janjao" by Plinio Marcos - In Portuguese - Brazilian Literature - Portuguese Language - Brazilian Books & Authors - August 1998


Brazzil
Short Story
August 1998

Who
Killed
Janjão?

What helped us was no magnanimous, humanitarian feeling from local authorities. No respect for the law, no fraternal spirit, religious, ethical or moral conscience gave us guarantee. The motherfuckers, fucking rulers, lacked any sense of justice. Our integrity was preserved by the big shots' sordid vanity. There were newspapers, radio, television stations involved.

Plínio Marcos

A mulher do prefeito daquela cidadezinha do interior, transpirando frustrações por todos os poros do corpo gordo, à frente de um grupo de destaque na sociedade local, comandou a invasão do espaço onde o Gran Circus Atlas estava armado. Aquela mulher era a mulher do prefeito. Autoridade. Poder. Não pedia, mandava. Ainda mais em relação a nós, gente da viagem.

—Uns vagabundos. Uma canalhada. Não sei onde o Nicanor estava com a cabeça, quando deixou esses ciganos acamparem na cidade. Pra que queremos uma espelunca como essa aqui? Pra quê? Ah, o Nicanor... É o seu enorme coração. Não sabe dizer não a ninguém. Eu digo a ele: "Nicanor, um prefeito às vezes tem que ser duro." Mas ele ouve? O primeiro sujeitinho que aparece choramingando lá na prefeitura leva tudo que quiser. É coração mole, esse Nicanor. Cedeu o seu terreno para os ciganos—cedeu graciosamente, é bom que se diga. O resultado? Mal chegaram, já criaram aborrecimento, encrenca, confusão. Mas, o que está feito, está feito. Palavra de rei não volta atrás. O Nicanor cedeu o terreno. Só nos resta ficarmos vigilantes em cima dessa gentalha. Sob controle rígido, eles não se sentem bem... Não podem... Vão logo embora.

O terreno do prefeito era na realidade do município, e "cedeu graciosamente" significava que nós íamos pagar aluguel sem recibo. Dez por cento do bruto direto da bilheteria do circo para o bolso do generoso homem público. Sem intermediário. Mas, deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é que a mulher do prefeito (autoridade, poder), muito cedo, quase de madrugada, invadiu com seu grupo o espaço do circo. Davam socos nos treilers, chutavam barracas. Uma algazarra.

—Vamos, acordem! Acordem! Isso não é visita de cortesia. É uma inspeção. Uma incerta, como diz o delegado aqui presente. Acordem! Acordem!

O delegado, chefe de polícia. Autoridade. Poder. Temido na região. Logo que chegamos na cidade nos avisaram sobre ele:

—Violento. Uma besta. Gosta de barbarizar os presos.

Porém, nas primeiras horas da matina, mesmo à frente de um sargento, um cabo e dez ou doze soldados, todo o destacamento da cidade, o delegado não parecia tão brutal como disseram. Efeitos da noite mal dormida, sem dúvida. Nós vimos ele na casa das putas. Contavam que lá o homem tinha regalias. Comia, bebia, trepava sem pagar. Ou, melhor dizendo, sem desembolsar dinheiro. Dava segurança ao recinto. Cinco ou seis policiais de plantão permanente nos puteiros era a paga. Bom negócio pro mulherio. Mas, as conseqüências do acordo se estampavam na cara inchada do delegado. Olhos remelentos, pálpebras caídas, olheiras profundas, bigodão sujo. Um mau aspecto. Terno amassado, camisa puída, gravata com laço frouxo. Seu único cuidado parecia ser com a vasta cabeleira, tingida grosseiramente de preto e fixada com uma goma ordinária na cabeça. Chefe de polícia. Autoridade. Poder. Mas, obediente à voz de comando da mulher do prefeito.

—Doutor delegado, diga a essa gente a que viemos.

Decididamente, de manhã o delegado não era muito claro de raciocínio. Ele ficava meio embotado. Sonado, tinha dificuldades para expor suas idéias. Acordado também, como veríamos depois. Mas, quando estava desperto, pelo menos era falador—o que o fazia pensar que era eloqüente. Porém, de manhã cedo...

—Cagüetaram vocês pra dona Ciloca. Ela reclamou... digo, deu parte... viemos conferir.

Dona Ciloca (nome perfeito pra gorda mulher do Nicanor, alcaide de cidadezinha do interior) não gostou do poder de síntese do policial. Pra ela e seu grupo, o momento era solene.

—Estou aqui como presidenta em exercício da Sociedade Protetora dos Animais desta cidade. Venho trazida por uma denúncia grave. Gravíssima. Contra o Circo Atlas. E para deixar bem claro que o assunto é muito sério, me faço acompanhar por toda a minha diretoria e por pessoas ilustres, as mais eminentes personalidades da comunidade, a quem não só nosso pequeno burgo, mas também o Estado e a Nação devem muito. Como já viram, o delegado, com seus soldados, está conosco. Esse homem, notório defensor da moral e bons costumes, se faz presente para garantir a qualquer preço o cumprimento da nossa missão.

Dona Ritona Capataz, greluda pela própria natureza, escutava aquele falatório do alto das suas botas de vaqueiro, torcendo impacientemente o cabo do seu inseparável chicote e mascando um charuto fedorento. Soltando baforadas, tentou ser simpática.

—Mas, porra, trocando tudo isso que a senhora falou em miúdos, o que querem aqui?

—Estamos aqui porque recebemos uma denúncia anônima de que no circo estão dando gatos e cachorros para o leão comer.

—Mentira! Mentira! Mentira! Puta mentira! Coisa de crocodilo. De algum filho-da-puta nojento, despeitado, invejoso.

—Despeitado? Invejoso? Não me faça rir. Que pretensão! Quem haveria de ter despeito, inveja de um bando de ciganos de circo?

—Quem? Muita gente. Muita gente mesmo.

—Quem, por exemplo?

Dona Ritona com certeza ia continuar o bate-boca, mas bastou um leve gesto da mãe da tribo para ela se calar. Di, a mãe de tribo daquele grupo de nômades, veio à frente. Vestia uma longa saia até o calcanhar, lenço na cabeça, xale preto por cima de uma blusa larga. Trazia no peito a jóia de mãe de tribo, pendurada no pescoço por um cordão de ouro. Mais que uma jóia, uma relíquia. Uma pedra verde com uma seta de ouro enrodilhada como a serpente da sabedoria. Di, imponente, vigorosa e altiva apesar dos anos, podia usar aquela jóia. Ela tinha valor provado nas penosas lidas da trilha dos saltimbancos. Sua autoridade não era a que os cargos e situações emprestam. Sua autoridade era sua mesmo, conseqüência de uma vivência intensa e sem máculas, referendada por todo respeito, carinho e mesmo veneração que a gente da viagem lhe devotava.

A mãe da tribo, serenamente, colocou seu olhar no rosto da Dona Ciloca. Aqueles olhos, luzeiros brilhantes encravados no rosto enrugado, ainda conservando traços de rara beleza. Olhos bruxos. Chaves que penetravam nos mistérios, que decifravam segredos. Olhos de olhadora. Di e sua magia de olhar. Uma arte. À noite, em volta da fogueira, se falava dessas coisas.

Na cara de cada um está gravado o retrato da personalidade. Em cada retrato existem linhas de força; no meio delas há o ponto onde se concentram as tensões faciais. É por esse ponto que quem conhece a magia de olhar penetra. Di sabia olhar. Sabia encontrar o ponto certo e, por ele, mergulhar nas regiões insondáveis das pessoas. E aí, lendo os pensamentos, decifrá-las. Não se engana um olhador com as máscaras da hipocrisia, nem com expressões dissimuladas. Diante de um olhador, não se consegue mistificar com atitudes posadas ou com qualquer espécie de artifícios. Di olhou Dona Ciloca no ponto.

Mau-olhado? A técnica é a mesma. Mas, a mãe de tribo Di jamais faria isso. Fiel à Sara, a Virgem Negra. Não olhava para o mau. Olhava para apaziguar os espíritos, para confortar os aflitos. Foi com doçura que Di olhou a mulher do prefeito. Com bondade e compreensão.

Dona Ciloca, carente total de religiosidade, uma criatura tão frágil, sem nenhuma memória de si mesma, uma entediada da vida, procurando compensações em ilusórias batalhas que só serviam para atestar a sua contradição existencial. Como pode, em sã consciência, um bebedor de sangue, carnívoro, vir a público condenar quem, como ele mesmo, bebe sangue e come carne? Dona Ciloca podia. Era a mulher do prefeito. Autoridade. Poder. Mas, tudo isso era sinal de tormento, causa de gasto inútil de energia, o que a deixava nervosa, neurastênica, histérica. Nos vapores do sangue menstrual das mulheres histéricas, monstros ganham forma, diabos se nutrem. Pobre Dona Ciloca... A mãe da tribo jamais faria uma maldade com aquela mulher doente.

Di olhou Dona Ciloca e a agitação, a arrogância, a agressividade que ela trazia ao chegar se dissiparam. A impressão que dava era que tinham injetado na mulher do prefeito um tranqüilizante de efeito imediato. Ela e seu grupo invasor se acalmaram. Era isso que Di queria. Serenados os ânimos, era mais fácil o entendimento entre as partes.

—O que a senhora, Dona Ciloca, veio fazer aqui, deve ser feito o quanto antes. A senhora e seus acompanhantes devem ter muitos afazeres.

Dona Ciloca estava visivelmente embaraçada. Parecia encabulada, confusa. Não sabia onde pôr as mãos. Demorou um tempo relativamente longo para voltar a falar e o fez quase se justificando:

—Houve uma denúncia... como presidente da Sociedade Protetora dos Animais... meu dever... tenho direito... a senhora compreende... é meu dever verificar in-loco a veracidade da acusação... Só isso mesmo... diz respeito... A senhora tem razão. Somos pessoas com muitos compromissos... Eu mesma tenho um encontro com uns amigos, meu marido, o prefeito, me espera. Então, quanto antes nos desincumbirmos dessa missão, melhor.

—A senhora não chegará atrasada ao churrasco na casa dos seus amigos.

Parecia que a Di havia lido o pensamento da Dona Ciloca. Ela estremeceu, ficou corada de vergonha. Encabulada, murmurou:

—É, assim espero.

Com o rabo do olho, a mãe da tribo consultou Franz, o domador. Ele sorriu e piscou um olho. Era o bastante.

—Ritona, leve essa gente até a jaula do Belo Platão, o nosso leão africano, uma fera doente e cansada por anos e anos a fio nas andanças das estradas. Leve eles lá. Não temos nada a esconder. E não estamos mesmo cobrando entrada para expor um bicho nas condições desse nosso leão.

Di não tirou os olhos da Dona Ciloca e todos continuaram parados nos seus lugares. Di, então, sentenciou:

—Uma pessoa justa é inviolável. Infeliz de quem a persegue, de quem a toca. O ajuste é feito pelo choque do retorno.

A mãe da tribo sorriu. Dona Ritona assumiu o comando.

—Venham comigo. Vão bisbilhotar o que quiserem.

Venham.

Todos nós seguimos a capataz, menos Di, que ia se recolher no seu treiler. Ia caminhando nessa direção, mas, de repente, como se tivesse tido um pressentimento, parou, meditou e veio atrás do grupo, mantendo distância.

O olhar da mãe da tribo atingira a mulher do prefeito profundamente e, por extensão, todo o pessoal que veio com ela. Perderam o entusiasmo. Estavam confusos, humilhados. Não havia como negar a superioridade da mãe da tribo sobre eles. Isso doía. Homens vaidosos, orgulhosos são feridos facilmente. Abatidos, caminhavam em silêncio. Afinal de contas, aquela gente tão importante não vestiu suas roupas de missa, de enterro, de grandes galas, nem se reuniu em grupo tão seleto, para ser diminuída; fácil e totalmente por uma cigana de circo. Mas, o que fez aquela mulher da viagem? Que disse que os ofendeu? Eles não saberiam responder. Dona Ciloca, naturalmente, era a mais atingida pelo golpe. Mas, que golpe? Di apenas permaneceu serena diante da prepotência, da arrogância, do menosprezo. Só fez isso. E foi o bastante para abalar as convicções daquela gente dona da cidade. Eles perceberam a própria fragilidade. Eles ficaram com medo da mãe da tribo. Se sentiram acuados por ela.

É preciso cuidado com quem tem medo e se sente encurralado. A reação de alguém nessas circunstâncias é sempre imprevisível. E é, de modo geral, uma reação mais ou menos brutal. Foi provavelmente por perceber isso que a Di decidiu nos acompanhar. Dona Ciloca, para recuperar o ânimo e o prestígio de líder, era capaz de tudo. Caminhava rumo à jaula do leão e cochichava para o delegado, em volume de carro-corneta anunciando espetáculo.

—No menor vestígio do crime, quero que o senhor detenha imediatamente os responsáveis por essa espelunca: aquela cigana velha, o domador e essa mulher com jeito de homem. Não podemos ter contemplação com gente dessa laia. Vamos mostrar a eles que somos do interior, mas não somos bobos. Não vão nos enganar com conversinha mole.

E o senhor, por favor, delegado, não se deixe levar por nenhum sentimento que não seja o de justiça.

—Deixe comigo, Dona Ciloca. Vagabundos matadores de gatos e cachorros comigo não têm moleza. Aposte todas as fichas nisso, que a senhora ganha na certa. Sei ser duro quando é preciso. E esses soldados, quando pegam, arrepiam pra valer. É gente escolhida a dedo por mim. Não são de ter dó de vagabundo. Se eu pedir, eles levam esses malditos ciganos pras quebradas e somem com eles. Pode confiar em mim.

Certa de que o delegado era tudo isso e mais alguma coisa além do que dizia ser, que era mesmo de fazer e acontecer por motivos de somenos, Dona Ciloca recobrou a petulância, a arrogância, a prepotência de mulher do prefeito. Autoridade. Poder. E, para levantar a moral da sua comitiva, quis se mostrar engraçada.

—Gente, que tipo de carne será que come um leão de uma espelunca? Filé? Ah, com a vida cara como anda...Será que ele come filé?

O pessoal da cidade se divertiu com a tirada. Riram muito. Um magricela de gravata borboleta iniciou um festival de bajulação.

—A Ciloca é sempre espirituosa.

—Ela não existe.

—Sempre mantém o bom humor.

—Humor fino, diga-se de passagem.

—Desde mocinha Ciloca foi assim.

—É verdade, ela sempre ela tem um dito jocoso pra descontrair o ambiente.

—Quanto mais tensa a situação, mais ela, com sua sensibilidade, com seu humor, nos devolve a confiança.

Iam prosseguir com os elogios, mas Pipo, o palhaço, fez questão de informar sobre a dieta do leão.

—O Belo Platão não come carne. É vegetariano. Come pouco. Tem medo de engordar e ficar rolando por aí como uma barrica.

Foi a vez do pessoal do circo rir. Os invasores voltaram a armar a carranca. O Pipo se entusiasmou.

—O avô do Belo Platão é que era tratado com carne. Era o leão de estimação do Nero. Quando o imperador tinha alguma cristã gordona, rolava a bruta pra arena e a fera se empanturrava. Quem foi que disse que mulher gorda não serve pra comer? O avô do Belo Platão comia. Esse Nero era mesmo esperto. Mulher bonita, ele guardava pra ele, gordona bagulhosa virava ração de fera.

Nós do circo nunca havíamos rido tanto com o Pipo. Essa manhã ele estava mais atrevido do que nunca. Mas, dessa feita ninguém o repreendia. Di, à distância, se divertia. Até Ritona Capataz, habitualmente sisuda, estava mostrando os dentes.

Se existe coisa que ofende autoridade é o ridículo. Dona Ciloca estava vermelha de raiva e de calor. Suava, tremia, pensava, mas não tinha o que dizer. Seus acompanhantes, com suas roupas escuras e pesadas, pareciam atormentados pelo Sol. Alguns até davam mostras de não estarem se sentindo bem. Estavam, além de tudo, constrangidos com as grosseiras piadas do Pipo. Nós do circo continuávamos a rir. O palhaço estava inspirado. Imitava a mulher do prefeito andando, ou um figurão daqueles bufando de calor. Tudo o que ele fazia era motivo de riso para nós. Só paramos quando ouvimos Dona Ciloca resmungar:

—Esse moleque atrevido já está ficando insuportável. Bem que merece uma lição.

O delegado, ameaçador, já ia avançar para o palhaço. Estávamos na frente da jaula. Mas foi contido pela mulher:

—Espere, delegado. Cada coisa tem a hora certa. Ninguém perde por esperar. Agora vamos examinar isso aqui. Sua presença é mais que necessária no local.

Fedor. Puta fedor. Fedor de merda, de mijo, catinga de leão. Que se há de fazer? Os bichos cagam, mijam, o Sol seca tudo. Fedor. Quem está no mambembe acaba até se acostumando. Mosca, mosquito, calor, fedor. Fedor. Tudo incomodava o grupo de Dona Ciloca. Diante da jaula do Belo Platão, não sabiam o que fazer, por onde começar a inspeção. Fedor, calor, mosca, mosquito, tormento. E a frustação por não encontrarem o que procuravam. Restos de pequenos animais domésticos devorados pela fera. Decepção. O que dizer? O que fazer?

Um sujeito atarracado, de óculos de lentes grossas, imaginou uma nova forma de pressão sobre o circo.

—Que fedor! Que imundície! Sem dúvida, isso aqui é um foco de doenças, de moléstias contagiosas. Temos que mandar o pessoal da saúde pública com urgência ver como isso aqui está. Se não tomarmos providência logo, nossas crianças, nós mesmos, estaremos sendo vítimas de um surto, de uma epidemia de sei-lá-o-quê. Vejam como está isso. Esse leão deve estar cheio de pulgas, carrapatos, muquiranas, sanguessugas. Meu Deus, olhe como o bicho está cheio de feridas. Que imundície! Que fedor! Não há meio de acabarem com moscas e mosquitos.

Ah, Pipo, Pipo...

—Mosca e mosquito não estão garantidos pela Sociedade Protetora de Animais.

—Exijo respeito, muito respeito com a Sociedade que tenho a honra de presidir. Você, moleque sem-vergonha, vem tentando me atingir, a mim, mulher do prefeito desta cidade, com piadinhas. Eu venho ignorando, porque o que vem de baixo não me atinge. Mas agora chega. Chega, entendeu? Entendeu? Coloque-se no seu lugar. Mantenha-se na sua insignificância. Minha paciência já está no limite. Não admitirei mais nenhuma grosseria. Nem sua, nem de ninguém.

Dona Ciloca, na sua fúria, quase perdeu o fôlego. Ofegante, parou de berrar. Respirando com dificuldade, com a veia do pescoço ainda inchada, como canastrã que representa com clichês o papel da prima-dona magoada, virou as costas bruscamente para todos. E deu de cara com o leão que, aborrecido com a gritaria, se levantou, espreguiçou e começou a procurar dentro da jaula um canto melhor para se acomodar. Indiferente aos movimentos da fera, mais uma vez o magricela de gravata borboleta puxou o coro de acariciadores do ego.

—A Ciloca é assim mesmo. Muito boa. Até quando deixa de ser.

—Não abusem dela. Não abusem.

—Ciloca brava mete medo.

—Deus nos valha.

—Mulher de temperamento forte.

—Desde moça Ciloca é assim. Brincalhona, expansiva, amiga. Mas, quando pisam no seu calo, é um osso duro de roer.

O delegado já ia se aproximando do Pipo, ameaçador, porém mais uma vez foi contido pela mulher do prefeito.

Uma modificação repentina lhe alterou o semblante. A causa disso é que o leão, ao andar para se deitar no canto oposto onde se encontrava a princípio, deixou visível um volume... um objeto... um...

—Lá! Lá no fundo da jaula. Lá no fundo. Vejam, o leão estava deitado em cima. Vejam! É a prova do crime. É a prova do crime.

Nós do circo gelamos. Ficamos pálidos de espanto. Não havia como negar. No fundo da jaula, um objeto estranho... O leão realmente estivera deitado em cima do... pacote... um embrulho... À meia distância, parecia, sim, um gato... um cachorro... um bicho encolhido, inerte... amassado pelos trezentos quilos do Belo Platão. Dona Ciloca estava eufórica.

—É a prova do crime. É a prova. Vão todos pra cadeia. Malditos carniceiros! Sanguinários! Ciganos mentirosos! Queriam negar essa abominável prática de dar animais domésticos pro leão comer. Delegado, providencie a retirada do gato morto da jaula. Mas, cuidado. Leão é leão. Este aí está velho, doente, pobre, mas ainda não está morto. E lembre-se, é uma fera carnívora. Não se demorem, retirem logo a prova do crime da jaula.

Os invasores murmuravam entre eles, trocando opiniões sobre o que ia acontecer com o circo e com todos os ciganos. O delegado e os soldados não sabiam como obedecer às ordens da mulher do prefeito. Como tirar aquela coisa da jaula? Ritona Capataz, vencendo o impacto do choque, reassumiu suas funções.

—Deixe pra nós. Nós tiramos aquilo pra fora. Também quero ver o que é. Parece coisa plantada pra complicar a gente. Franz, se mexe.

O domador pegou o chuço, vara de cutucar fera, e rapidamente puxou o entulho do fundo da jaula. O que se viu era espantoso, desconcertante para os dois grupos. Era uma trouxa de roupas. Uma trouxa de pequenas roupas.

Após um momento de surpresa, Dona Ciloca, horrorizada, balbuciou:

—Roupas de criança. De criança. Meu Deus! Será? Será que esses ciganos foram capazes de um crime tão terrível? Em nossa cidade? Oh, meu Deus, meu Deus. Esses assassinos pagam com esse crime odioso a nossa hospitalidade. Meu Deus! Tem que haver pena de morte. Tem que haver.

As mulheres da cidade, várias delas histéricas, tiveram ataques. Berravam, choravam, desmaiavam. Os homens... Que homens? Queriam acalmar a mulherada enlouquecida, mas só aumentavam o tumulto, tentando acudir todas ao mesmo tempo. O delegado, indignado, excitado pela sua imaginação fantasiosa, completamente transtornado, parecia sedento de sangue. Esfregava as roupas retiradas da jaula nas nossas caras.

—Que é isso? O que significa isso?

Dona Ritona fez o reconhecimento. Não havia dúvidas, nem pra ela, nem pra ninguém do circo.

—É o terno do Janjão. Do anão Janjão.

—Que faz na jaula a roupa de um anão?

—É o que eu gostaria de saber.

—Eu também. E quem pode explicar esse fato são vocês, ciganos nojentos.

—Talvez o anão explique.

—Se é que não deram ele pro leão comer.

Pipo. Pipo e suas ironias...

—O leão deve ter tirado a casca do anão antes de comer ele.

O delegado, ao escutar a observação do palhaço, reagiu com extrema violência. Deu um murro no rosto do palhaço, que bateu numa das rodas da jaula e caiu. Os soldados, mecanicamente, sem esperar muito, pisotearam e chutaram o Pipo no chão. Foi tudo tão rápido, como um relâmpago. Nós do circo ficamos paralisados. Os invasores, como por encanto, suspenderam o escarcéu que faziam e também ficaram sem ação.

Tudo durou o tempo de a Di se aproximar da Dona Ciloca e olhar para ela, dessa vez energicamente. A mulher do prefeito começou a pedir, a implorar que parassem com o massacre.

—Parem! Parem! Parem! Delegado, mande parar com o espancamento. Vão matar o cigano. Vão matar. Estou mandando parar.

Precisou veemência da Dona Ciloca para conter a polícia. Os soldados, relutantes, se afastaram um pouco. O delegado então ergueu o Pipo, encostando-o na jaula pra que ele não caísse. O sangue jorrava do nariz e da boca do palhaço. O chefe de polícia não levou em conta o estado de sua vítima.

—Então, canalha? Aprendeu que tem que respeitar as autoridades? Aprendeu?

—Ele aprendeu tudo. Tudo. Aprendeu a respeitar as grandes autoridades que são vocês. Agora basta. Largue o meu rapaz.

O delegado foi amansando. Foi soltando o Pipo aos poucos. Nós o amparamos para que ele não caísse. Um silêncio profundo desceu sobre o acampamento do circo. O Sol a pino, o fedor, as moscas, os mosquitos, nada parecia incomodar. Estavam todos imóveis, calados. Di foi quem quebrou o encanto.

—Achem o anão e tragam-no aqui.

A mãe da tribo mandou e todos saímos à procura do Janjão. Aos poucos, os invasores começaram a se animar e a antever o sucesso.

—E se for verdade? Se o leão...?

—Não quero nem pensar.

—Imaginou o escândalo?

—Adeus, sossego.

—Será que vem televisão?

—Você duvida?

—Eles jamais perderiam um assunto desse.

—Claro que não.

—Aposto que vem até o Fantástico.

—Natural que vem. Não é todo dia que um leão come um anão.

Nosso pessoal ia voltando da busca de mãos abanando.

—Não achei.

—Não encontramos.

—Sumiu.

—Evaporou.

—No alojamento dos solteiros encontramos só a malinha dele com a coleção de revistas de sacanagem. Mais nada.

—Onde será que se enfiou?

Ah, Pipo, Pipo, que nunca se emendava.

—Temos que esperar o leão cagar para ver se aparece pelo menos um pedaço do anão.

—Filho da puta, nojento! Ainda não aprendeu? A lição não serviu?

O delegado avançou para o palhaço, mas parou nas ameaças. Respirou fundo. Sorriu. Ia começar uma estranha transformação. O delegado ia deixar de ser a besta brava, o policial espancador, para ser um detetive investigador arguto. Tornou a respirar fundo e falou pausado, como quem raciocinasse.

—O anão sumiu. Suas roupas, sem ele dentro, apareceram na jaula do leão. A fera, sempre faminta, não parece estar com fome no momento. O que é uma indicação de que comeu. E, muito provavelmente, comeu o anão. Mas, o anão com certeza não se atirou de livre e espontânea vontade na boca do leão. Quero dizer, não se suicidou. Ninguém nunca se suicidou dessa maneira. E o anão não seria o primeiro. Essa linha de pensamento me faz sugerir que alguém matou o anão e jogou ele na jaula. Ou, quem sabe, jogou a anão ainda vivo para que a fera fizesse o serviço? Quem matou a anão? Quem? Claro, claro. Ninguém sabe. Um criminoso frio e calculista, capaz de tirar a roupa de um anão e jogá-lo para um leão comer, não vai confessar só porque estou perguntando. Mas, eu descubro o assassino. Descubro. Podem apostar todas as fichas nisso, ganham na certa. Nunca deixei um caso sem solução. E não vai ser agora, depois de muitos anos de janela, que vou ser enganado por um assassino canalha, nojento, cigano. Eu descubro quem matou o anão. Por enquanto, todos do circo são suspeitos. Todos. Ninguém sai do acampamento. Ninguém.

Nós todos do Gran Circus Atlas fomos reunidos em volta do picadeiro. Sentados nas cadeiras de pista, esperávamos aflitos o início do mais triste e lamentával espetáculo de nossas vidas. Tudo o que estava acontecendo conosco era humilhante. Muito mais que humilhante. A roda da fortuna passava por baixo. Maldição! Nós, como qualquer artista, sempre sonhamos com multidões frenéticas nas portas das casas de espetáculos onde fôssemos nos exibir. Gente, muita gente querendo entrar a qualquer preço, pagando uma exorbitância no ingresso nas mãos dos cambistas. Que merda!

Cada vez juntava mais gente na porta do mafuá. Gente que não media conseqüência nas tentativas de invadir o circo. Puta que pariu! Às vezes fazemos das tripas coração para divulgar um espetáculo. A gente anuncia, apregoa, alardeia, badala... e todo o escarcéu resulta em nada. Ninguém toma conhecimento. Não escutam, não vêem a propaganda. E no entanto... má notícia corre rápida. É foda.

—Mataram o anão do circo.

—Como foi?

—Deram o desgraçado para o leão comer.

—Quem foi?

—Foram os ciganos.

—Só podia ser. Raça maldita.

Boca-à-boca. Bochicho. Um pro outro. Corrente. Veneno. Quem conta um conto... E cada vez chegava mais gente. Mais e mais. Diz-que-diz.

—Filhos da puta.

—Mataram o anão.

—Cigano tem parte com o diabo.

—Temos que acabar com essa raça.

—Não pode sobrar nenhum pra semente.

—Não vamos deixar nenhum mesmo. Se sobra um, eles se alastram.

—É isso. Coisa ruim cresce fácil.

—Não vai ter filho da puta nem pra contar a história.

—Cigano não presta mesmo.

Como o homem instalado tem ódio de quem se move, de quem não tem residência fixa, emprego permanente e os cambaus, perseguem, espancam, expulsam dos lugares os que se atrevem a passar. Simplesmente passar. Puta que os pariu! Homens-pregos. A gente da viagem traz alegria, emoção, poesia, sonho... Porém (e sempre tem um porém), é justamente o que o homem instalado teme. Isso tudo perturba os hábitos seguros da sua rotina, o imobilismo do seu dia-a-dia. Um bando de vagabundos passando. Só por passar perturba a vidinha da comunidade. Provoca estremecimentos. A buceta da mulherada fica molhada, o caralho mole dos homens fica arrepiado... É por aí. Com certeza é por aí que se abalam as estruturas dos acomodados. Eles se defendem da liberdade com organizações, constituintes, leis, Estado, polícia, tudo o que fortalece um sistema político fixo de poder. E de repente um bando de vagabundos... são culpados. Culpados. Culpados. As inquietações... as velhas esperanças... as imaginações... essas coisas afloram. Ódio aos culpados...

—Vamos pegar os ciganos.

—Eles têm que pagar por esse e por todos os crimes que praticaram. Malditos assassinos de anão.

—Pega! Pega!

A polícia não conseguia conter o povo indignado. A guarnição local não deu conta. Pediram reforço nas cidades vizinhas. A todo momento chegavam tropas. Mexe e vira, os soldados eram obrigados a baixar o cacete pra acanhar a turba ensandecida. Claro que ninguém da polícia sentia remorso por bater no povo. A ordem era baixar o chanfralho. Ordem é ordem. Obedecer era o dever. Foram treinados pra isso. Obedeciam. Mas, no íntimo, achavam que era mais prático deixar rolar. Bastava uma recueta. O resto, que se fudesse!

Quem haveria de reclamar por um bando de ciganos massacrados? Para que fazer cerimônia com a escória humana?

O que nos valia naquela hora-limite de nossa existência não era nenhum sentimento magnânimo, humanitário, das autoridades locais. Nenhum respeito às leis, nenhum espírito fraterno, nenhuma consciência religiosa, ética, moral nos davam garantias. Os filhos da puta, dirigentes de merda, eram desprovidos de qualquer senso de justiça. O que preservava nossa integridade era a sórdida vaidade dos figurões. Jornais, rádios, televisões na parada... Sabe como é que é. Pois é. Nós ali, garantidos unicamente pelos veículos de comunicação social. Não que os repórteres estivessem empenhados. Não, não. Documentavam. Apenas documentavam os acontecimentos com distânciamento profissional de pessoas experientes naquele ofício. Belas merdas. Nenhuma emoção. Com certeza gostariam mais de ver o circo pegando fogo. A puta que os pariu! Se os ciganos fossem linchados, enforcados, empalados... Tragédia, carnificina, sangue... Notícia em primeira página, reportagem especial nas revistas coloridas, chamada na capa, destaque no horário nobre... Grana circulando, venda aumentada, mais anúncios... Então, que se fodessem os ciganos! Porém, era preciso maneirar. Deixar as coisas acontecerem por si. Sem insuflar nada. E os interesses mesquinhos de cada um produziam um equilíbrio.

E nós ali, envergonhados, com medo... Medo? Mais. Muito mais. Pavor. Como dimensionar com palavras os sentimentos? As emoções não cabem nas palavras. As palavras podem até sugerir o que um ser humano sente. Mas, esse sentimento anunciado com a palavra logo se vulgariza, se transforma, não necessariamente em mentira, mas numa coisa chocha, sem energia, um arremedo grotesco da intenção pela qual foi pronunciada ou escrita. Porém, o que pode um contador de história sem as palavras? Então, eu digo: nós ali com medo. Mais que medo. Com o cu na mão. E acho que me entendem. Pois é. Que bosta. Um bando de mambembeiros, pobre bando, encurralado... Suspeitos. Todos suspeitos pela morte do anão Janjão. Situação encardida. Não havia como negar. Quero... quero, merda nenhuma... sou obrigado a reconhecer... tudo indicava... um ou dois ou três de nós, sei lá quantos... Valha-nos Deus! Mandaram o anão pro beleléu. Mas quem? Quem entre nós foi capaz? Difícil crer que um dos nossos... Mas, porra... Puta la vida, vida la puta... Dava o que pensar. O anão sumiu. A roupa do filho da puta no gaiolão. Alguém cometeu o crime... Alguém deu o anão pro leão comer... O filho da puta do bicho comeu o pequeno com osso e tudo...

Que fome. Fome de fera. Sobrou a roupa... Manha do assassino... Sem roupa, anão nu. Puta frieza do assassino. Isso também éramos obrigados a reconhecer. O criminoso, se estivesse entre nós, tinha sangue gelado. Além de ser mestre na arte de despistar. Grande mestre, capaz até de enganar a mãe de tribo Di, senhora olhadeira que jamais falhara.

—Não vejo sanguinolência em ninguém... em nenhum dos nossos. Olho. Vou fundo no íntimo de um por um. E ninguém acusa crime, violência, perversidade. Duvido que alguém do circo... Mas, só Deus sabe tudo...

Poxa, será que o pequeno?... Suicídio? Difícil crer. As piores coisas passavam sempre na cabeça podre do Janjão. Ele era capaz das piores maldades. Contra os outros. Claro, claro... se o anão era tão sacana com o próximo, era porque vivia insatisfeito consigo mesmo. Mas, suicídio? Não. Difícil acreditar nessa hipótese. O Janjão achava que ia ser um sucesso mundial. Segundo ele mesmo, isso ia acontecer muito antes do que supúnhamos. Um primo do anão, anão também, que estava nos Estados Unidos abafando a banca, ia mandar buscá-lo. E o Janjão escrevia cartas e mais cartas. Recebia algumas, é verdade. Não mostrava pra ninguém, mas ficava alegre com o que lia e relia. Podia ser... numa dessas negativas... Tchau e benção... Desilusão, sem esperança... Não, não. Suicídio, não. Aquele idiota não levava jeito. Porém, se não havia sido suicídio... Crime. Mas quem? Quem?

É amargo ser envolvido pela dúvida em relação aos companheiros. Desconfiar do próximo, dos colegas, dos camaradas de jornada, puta veneno. Mas, naquela situação... Nós, encostados na parede, frágeis... Que merda. Revendo fatos, considerando, por exemplo: aquele crime não era coisa de gente estranha ao circo. Não, não. Qualquer um de fora... sabe como é? Mesmo o Belo Platão, fodido, na mão das traças... de qualquer forma, leão é leão. E não é qualquer um que se atreve a abrir a jaula de uma fera. Ainda mais fera faminta. E outra: não houve tempo de o Janjão se indispor com ninguém daquela cidade. Tinhamos acabado de chegar. E mais outra ainda: o que não faltava no circo era gente com bronca pesada do pequeno. O filho da puta era difícil de agüentar. Bisbilhoteiro. Fuxiqueiro. Maledicente. Sem nenhuma cerimônia se imiscuía na intimidade dos outros e trazia à baila questões delicadas. Filho da puta. Não media conseqüência. Ia intrigando um com os outros. Filho da puta mesmo. Vai daí... Aquele anão Janjão era um cadáver barato. Podia ser qualquer um. Inimigo é que não faltava pra ele. Mas quem?

E tem outra coisa que é preciso confessar. Nós não tínhamos muito conhecimento uns dos outros naquele mambembe. Ao contrário do que pensavam, não éramos um bando de ciganos. Não. Não fazíamos parte de tribo, nem da família gitana. Sabe Deus por que a maioria de nós entrou na trilha dos saltimbancos. Vocação artística? Desencanto social? Malandro em fuga? O que se sabia uns dos outros era a versão oficial divulgada pelo próprio. "Eu fiz, eu aconteci, tal e tal, tal e coisa, coisa e lousa." Dá pra botar fé? Porém... na trilha não se exige atestado de boa conduta, carta de bons antecedentes tirada na polícia, com firma reconhecida em cartório.

Ninguém conferia ninguém. Na viagem sem termo, antes foi antes, agora é agora, e o que virá? O choque do retorno se encarrega da justiça. Infalível. Nisso podem crer.

Mas, naquela trupe todos nós éramos tidos como ciganos pelo povo dos lugarejos onde chegávamos. Se fôssemos encarados como vagabundos, andarilhos, não teríarnos grandes regalias. Mas, cigano de estrada, gente da viagem, filho do vento... É preciso acrescentar o racismo.

—São ladrões de alma, esses ciganos.

—Feiticeiros.

—Têm trato com o diabo.

—Roubam tudo.

—Eles batem nas casas, pedem um copo d'agua, quando se vai buscar a água, eles roubam tudo o que podem. Num abrir e fechar de olhos. São espertos. Roubam tudo.

—Roubam crianças.

—Nem fale. São uns canalhas. Preferem roubar crianças de colo. Torcem as juntas dos bebês. As juntas dos joelhos, dos braços, do pescoço... para depois exibirem as pobres criancinhas nas feiras, como contorcionistas.

—Deus meu, do que são capazes esses malditos ciganos.

—A Virgem Santíssima nos guarde e proteja todos os nossos filhos.

—Amém nós todos!

—Amém! Mas mesmo se fiando na Virgem, é bom ter cuidado. Enquanto os ciganos estiverem por aqui, não deixo meus filhos irem sozinhos nem até a esquina.

—Assim é que tem que ser. Seguro morreu de velho. Todo cuidado é pouco com essa escória. Principalmente com as meninas. Eles dão perfumes pra elas cheirarem, aí...

—Não me fale. Não me fale. Só de escutar essas coisas, perco o sono. Só vou dormir sossegada quando eles forem embora.

E tome pedra no circo. O que dizer pra essa gente cheia de preconceito racial, político, religioso, sexual, social, cultural? Puta que os pariu! Nada a explicar. Não adiantaria. A gente dos lugarejos... duzentos anos de atraso. Nas grandes cidades... Mas, porra, uma espelunca como o Gran Circus Atlas! Bosta! De vila em vila, de lugarejo em lugarejo. E também nossa fama de ciganos tinha até alguma razão de ser.

O Atlas era de origem circassiana (ciganos artistas). Foi Peter Soler, um nome muito respeitado entre os circenses e os romanis que fundou e dirigiu aquela companhia de espetáculos ambulantes por muitos e muitos anos de sucesso. Se o senhor Soler foi um rei? Um patriarca? Sei lá!

Ouvi contarem que ele era um homem extraordinário. Enérgico, valente, extremamente generoso. Encarava todas as situações com serenidade. Tinha fibra pra conduzir seu bando. Era festeiro. Alegre. Muito querido por tudo isso e ainda mais por sua sabedoria. Eu me incorporei naquele grupo muito depois do seu falecimento. Mas, ao que parece, a morte daquele gigante coincidiu com o declínio não só do Atlas, mas dos circos em geral. Progresso, cinema, televisão. A viúva Soler, a mãe de tribo Di e seu irmão de sangue Ricardino, além do Kaku (feiticeiro cigano) prosseguiram na estrada, como manda a tradição. Mas aos poucos foram ficando sozinhos. Os velhos... o tempo de cada um vai chegando. Os mais novos foram se fixando nas metrópoles. As condições sociais, políticas, econômicas foram mudando rapidamente. Capital concentrado em bolsões econômicos. Migração. Gente abandonando a região de origem, se desvinculando das raízes culturais. Gente indefesa na nova realidade. Novos valores morais impostos pelos veículos de comunicação. Propaganda... Novas metas... Quem é cigano no meio dessa gente que vai de um lado para outro atrás de trabalho, segurança, conforto?

O preconceito? Só para quem permanece à margem disso tudo. O referencial mudou. Trabalha? Produz? Consome? Tudo bem. Quem se enquadra está enquadrado. A sociedade capitalista, baseada nos princípios de propriedade privada dos bens sociais, tem formas poderosas de sedução. Pontos brilhantes, hipnóticos, enganadores. O cigano não é melhor nem pior do que ninguém. Se solta as amarras, rompe com as raízes... babau. Muitos foram se fixando. Cidadãos contribuintes, eleitores, sujeitos às leis do reino da banalidade.

Para Di, a mãe de tribo, e o Ricardino, essas coisas todas, sobretudo o sumiço dos ciganos das estradas, eram claros sinais do final dos tempos. Mas eles não se rendiam.

—Vamos, irmão?

—Para onde, irmã?

—Para onde? Não sei? Para onde nossos pés nos levarem.

Excerpted from O Assassinato do Anão do Caralho Grande (The Murder of the Dwarf with the Big Prick) by Plínio Marcos, Geração Editorial, 1996, 142pp.


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