Brazil - Brasil - BRAZZIL - News from Brazil - Seven short stories by Simone Zied - Brazilian Literature - Portuguese Language - December 2002



 

Brazzil
Literature
December 2002

Seven short stories
by Simone Zied

Alternative Medicine Instead?

Inspired by the Hebrew king, the hospital administrator
invites the doctors to share in equal parts the citizen.

Simone Zied

Em plena metrópole carioca, zona sul, um par de senhores da saúde engalfinham-se nos corredores de uma santa casa, pleiteando vigorosamente seu direito à carcaça de um moribundo a chacoalhar: paciente meu, nada disso, o cliente é meu desde rapazinho; um puxa de cá, acotovela de lá; e o doente, vacilante, sem rumo nem percepção, cuja perturbação física era suficiente para o martirizar, vê-se constrangido a destinar—tal criança em divórcio familiar—qual curandeiro irá ministrá-lo os conhecidos ordálios medicinais. Foi então, sem prever conseqüências, que o pobre homem conseguiu, pelas sutilezas da lógica, da escolha se isentar, cabendo ao diretor do recinto um fim decente acertar. Como irredutíveis, tanto um quanto o outro, os médicos pelo seu agonizante clamavam; e o administrador, em um arroubo de brilhante pedantismo, invocou a passagem bíblica na qual Salomão julga o escandaloso caso de duas mulheres que se apresentam como mãe de um menino só: semelhante ao sábio rei hebreu, convida os doutores à repartição em partes iguais do cidadão. Qual não foi a surpresa e mesmo o desatino ao constatar que, diferente do texto judaico-cristão, na qual há uma mãe legítima a ceder o filho, prontamente, com bisturis em punho, ambos passam a dividir o miserável, que entre olhares de pavor e gritos orquestrais, aborrece as enfermeiras que limparão a sujeira de tanto sangue derramado no assoalho e pelo silêncio, imprescindível, quebrado. Decomposição concluída e a amizade entre os lustrosos doutores retornada: cada um com sua cota de vísceras e corpo correram à família inquirindo o pagamento de seus custosos honorários. Imagino, fossem adeptos à medicina alternativa—agora eu, depois sua vez—estava o indivíduo inteiro a gozar de sua dor e rendendo remunerações mais vantajosas aos guardiões da saúde.

Dumb Bell

The hard part was to find melodies
orchestrated by a single bell.

Simone Zied 

Conta-se nas bandas de cá que pelos lados do interior mineiro um padre flácido e resfolegante cultivava um sino cujo badalo fora castrado por inadimplência do encarregado da manutenção instrumental da paróquia, que se situava em uma cidadela nutridora dum afeto particular pela campânula envelhecida e que impugnava empertigada contra a possibilidade do enterro do cone sagrado, por isso, talvez, a autoridade eclesiástica local num plano celestial engarapou um técnico eletricista nutante a implantar por trás do vetusto objeto vibrante um avançado equipamento sonoro, cuja potência atingisse toda vila e, instalada a moderna engenhoca, o servo de Deus e o homem da máquina selaram pacto de jamais divulgarem a situação real do instrumento de bronze e isto não pareceu custoso aos dois, difícil mesmo foi obter um CD cujas melodias se valessem da orquestra de um sino só. 

Devil's Apprentice

Stop being naïve, people in a hurry, that's all there is,
they want a slave, and this is some thing I am not.

Simone Zied
To Sandra. 
In memory of Vera. 

Ô, Dolores, corre aqui..., que corre o quê, Francineide?!, aqui é um lugar de silêncio, puro e limpo, não cabe correria, mas dá uma olhada lá no quatrocentos e três, a acompanhante já veio aqui duas vezes, duas vezes?, esse pessoal é apressadinho, Francineide, você tem que aprender muito ainda, viu?, mas não será urgente? Veio duas vezes, a cara meio pálida, pode estar acontecendo alguma coisa..., olha aqui, menina, estou nesse negócio há anos, tá sabendo, e conheço direitinho essa gente que gosta de tudo atendido na hora, gente fresca, riquinha, ou pior, um pessoalzinho que come mortadela e arrota peru..., mas Dolores..., não me interrompa, estou falando por experiência: aqui quem manda somos nós, Francineide, quer que eu vá rápido? Sorrisinhos, bombons e presentinhos aqui para a mamãe, senão..., rá, nem adianta espernear!, mas isso é certo?, olha, eu já dou um duro danado, Vanderlei me apoquenta todo dia quando chego em casa, os meninos estão mais largados no mundo do que sendo criados, o salário é ruim e tem esse bando de enfermeira exigindo a torto e a direito da gente, gritando quando os doutores reclamam com elas, aí que consigo ter alguma força aqui dentro e você acha que vou deixar barato?, tô entendendo, Dolores, mas parece maldade, eles podem estar precisando de atendimento de verdade..., que nada, menina, e eu não sei quando estão? Aquela menina, a acompanhante do quatrocentos e quatro..., não: quatrocentos e três!, é, isso mesmo, quatrocentos e três, aquela mocinha é apavorada daquele jeito, outro dia fez um escarcéu porque o soro saiu da veia da mãe, eu me fiz de sonsa, demorei mesmo, ah, esse povo pensa que é só ordenar que temos de ir fazendo?, comigo não, jacaré!, então, já posso ir lá?, daqui, olhando da porta, vejo a cara ansiosa da menina vindo toda hora na porta do quarto, deve ser sério..., é nada, bobinha, deixa de ser ingênua, gente apressada, só isso, quer tudo de mão beijada, quer escravo e tá aí uma coisa que não sou e nem você vai ser, senão eles montam, vai por mim!, se é assim..., é, é assim sim!, então eu espero mais um pouco, também não quero ninguém me fazendo de empregada: fiz o curso de auxiliar com tanto sacrifício, consegui deixar de trabalhar na casa de Dona Elvira justamente porque não queria mais ser doméstica e vem essa gente me fazer de criada?, gostei de ver, Fran, já está aprendendo... 

Aptº 403: sem ar, tomada pela doença que a consumia o sangue, Dona Helena, contorcia-se na cama e implorava à filha, a cada seis segundos—pois sua dimensão temporal havia se perdido em meio a tanta dor e desespero— que lhe chamasse a enfermeira; filha obediente, agonizando diante do sofrimento materno, chamou por duas vezes a recém-chegada auxiliar de enfermagem e, sem entender, assistiu da porta do quarto, nos momentos em que verificava se a mocinha já estava vindo, a mesma olhando-a de outra porta, parecendo desocupada, mas igualmente aparentando indisponibilidade para atendê-la. Sua mãe? Sufocou três horas atrás e ela, a filha, encontra-se detida na delegacia mais próxima: diante de tanta negligência, em vez de falar com as autoridades hospitalares, fez justiça com uma roliça barra de ferro, parte do equipamento médico.

Don't Know the Name,
It's All the Same

Biting hunger fed by a slippery finger: the table, the bonds,
me naked, open to your plays and deliriums.

Simone Zied

"Darkroom unleashes imagination in pornographic images in
Which you always be the star, untouchable, unapproachable,
Constant in the darkness, nursing an erection,
a misplaced reaction, (…)" (Marillion, Incubus)

Ela pensa:

poderia denominar caralho o poste-ídolo que desejo inserido em mim e se o pedantismo me afetasse, assumiria minha ignorância vocabular refugiando-me nas sensíveis entranhas de Manoel de Barros: "os deslimites da palavra... Do que não sei o nome eu guardo semelhanças".

Meu dedo escorre e, uma vez ainda, "pega delírio!"; enfeitiçando telepaticamente, comunica por antenas sua vontade e também sua vontade por antenas. Desejo duplo: é mais do que do dedo, é de todo um ser.

Meu idioleto—do tipo esquizóide modesto—mantém hermético um prazer intraduzível; sensações implícitas imitando a exposição: ingenuidade. E o dedo não pára!

Como extrair do outro a primazia de um sabor ainda não inventado; com aromas desmoronados, beirando o surreal (e a solidão continua a ser a única resposta audível)?

incapacidade de sentir por mim mesma: "forma flexível, comprida, o que é necessário para que seja humana, sem ângulos, e, na extremidade, com a pequenez da cabeça, a súbita harmonia surgida da massa do corpo". Imagem emprestada de Duras, a Marguerite.

... delineando mentalmente imagens voyeurísticas esclarecedoras de minhas taras pelo sempre ausente você; intensamente nas sombras. Continua-se.

Memória: desfigurada pelo pânico, fui solidão; manutenção de uma auto-piedade banhada por realidade cruenta; vertigem e engodo. Arrastada por uma corrente hipotética, deixo-me lambuzar nesse lodaçal açucarado de estratagemas e artimanhas: acreditei sexy; hoje, sei dor! Uma lágrima mistura-se ao sabor-dedo.

Refazendo o clima: afinal, excito-me ou choramingo?; a temperatura?, conserva-se quente; umidade "relativa" dos lábios?, permanece absoluta; há como retornar.

O petit ami de Madame Bovary se faz meu amante virtual (fictício além de não se atualizar) e lhe (me) indaga com um frêmito corporal que é sentido somente—ah, arrogância juvenil!—por mim: "já não lhe tem sucedido muitas vezes… encontrar… alguma imagem meio desvanecida, que vem de longe e parece ser como que a exposição inteira do nosso sentimento mais sutil?" Sim, respondo acariciando-me, sim, a (e à) sua exposição!

E nós?, atados, emaranhados, esgarçados... finalmente arrebentados. E nós?, meus, seus, como se pode ambicionar contato sem que se deseje que o mesmo se concretize? Fui, melhor, fomos... nós, cegos e duplos, nós fomos!, e separados ainda que unidos como nunca. Você?, meu!, eu?, lógico, sua!, suando... suando, juntos e... distantes. Beije-me e não crie empecilhos, sejam eles reais ou fictícios. Fantasio melhor: nós que eram eles, que éramos...

Pausa: minha mente capaz de memorizar trechos a perder de vista, brinca com a ficção roçando-se a ponto de confundi-la com verdades e já acredita serem suas palavras de outrem; ela mesma mostra-se incompetente de recordar um carinho seu, muitos não foram, é verdade, mas eram seus, pensei: me bastariam; olhando agora receio que não, por isso obrigo-me a recorrer a subterfúgios alheios a você, um corte em mim! Fossem lembranças suas seriam suave, seriam delícia, assim são mero escudo, proteção oca de alguém que prefere recordar qualquer coisa a não ter do que se lembrar!

Fome áspera alimentada por um dedo escorregadio: a mesa, as amarras, eu nua, aberta para suas brincadeiras e delírios; você, corpo talhado pela natação, magro ainda que com músculos ressaltados e delineados, pêlos distribuídos justamente, sem excessos, sem carências: o suficiente para já me fazer prazer! Suas incapacidades transmutam-se em generosidade, causando-me deleite, quase tontura. Meu estômago se contrai: acúmulo necessitado de explosão. E agora, olhando-me, vejo em você a maldade de um algoz que maquina as torturas, desespero!, arranha-me e de saliva lava-me com sua boca quente: mordisca meus lábios e suaviza a dor com um sorriso; daí que os apertos me fazem implorar: desamarre-me!, pedido falso, não quero!, sim às suas vontades oníricas realizadas em mim: sussurro e desespero, porque fáceis; porque suas fantasias!

Vem a mim também sua imagem açoitada pelos meus longos cabelos; seu fechar de olhos diante de minhas carícias sádicas; o arrepio de suas costas ao contato de minhas longas unhas cintilantes: incongruência banhada por finas marcas de um sangue límpido, o de sua carne ferida! E gemidos e contrações infestam seu rosto, quase um esgar alvo: mistura de medo e vontade. Eu abuso!

Extenuada e destimbrada pelo frenesi de lembranças evadidas, entrego-me ao gozo sumarento: armistício passageiro de uma mulher embriagada, há encanto por todos os lados, untuosidade nítida. Mas logo a trégua se esvai: sobra dor em seu lugar.

E então o cotidiano se acende: luz de arrependimento pelo desejo censurável (homem tortuoso não se deve almejar), prometo-me corvo, finalizando: "nevermore, nevermore".

To all repulses, cheers!

He was completely drunk when he met Catarina and recognizing
the relational avarice in each other they mutually sucked their
strengths; he's still alive (?), loaded, of course.

Simone Zied
"Se me queres ver chorar, 
tens de sentir a dor primeiro tu (…)." 
(Horácio) 

Tarde de um dia, importa mesmo?, qualquer (decido que não faz diferença!), olho pela janela do quarto—tormento: vizinhos a brincar, ainda pequenos! Em um grupo de crianças saltitantes, vozes finas e imprecisas, dois meninos resolvem definir o que nem eles sabem direito: a sexualidade de uma menininha! O jogo era esconde-esconde, tão ingênuo; minha visão se expande porque no terceiro andar; observo o que esses estranhos pigmeus almejando a masculinidade jamais imaginariam; não ouço o que dizem, mas crio o diálogo que a cena não deixa se equivocar. A menina—o nome já diz, menina no corpo, nas idéias—acredita lisonja e mesmo proteção o que ambos lhe oferecem: assim, encolhida—entre muro e o corpo dos dois—não percebe (ainda que pressinta algo estranho, isso se verifica mesmo à distância) o abuso. (Mais tarde lavará a bunda com muita força, como se água e sabonete removessem angústia da alma!) Cena que dura o quê?, vinte?, quarenta minutos?, sei lá, me perdi ali, sofrendo com ela, fantasiando dela as dores acometidas no futuro por bobagens infantis. Não, não movi uma palha em seu favor (e conto justamente numa tentativa de espantar fantasmas; reza não foi suficiente); não gritei, nem um ruído sequer, era um observador, um espião. Passado o tempo que não soube estabelecer, uma outra, mais velha, emaranha-se entre aqueles corpos apertados e com uma autoridade (que não sei de onde veio) aponta um dedo esguio e duro nos focinhos dos meninos enquanto seguramente apóia outra mão no ombro da confusa vítima. Há algo errado, mas o quê? A cabeça meio que tonta, balançando tensa ainda que sutilmente confirma a minha sensação: ela intuía a maldade, mas preferia crer no agrado dos moleques.

Três dias depois? (porque tenho de me prender a essas informações temporais?), as duas personagens femininas estão em meio a uma rodinha de crianças, unanimemente composta por meninas: aquela que fora espremida no muro chorava, parecia estar levando uma bronca. Desta vez desci do meu apartamento, precisava conhecer o desfecho: Margaret, aprendi seu nome, escondia o rosto, era uma punição pública para que outras não errassem também; a mais velha dizia acusações, a ingenuidade ali era severamente castigada! Margaret fez sua lição, o nojo por homens não permitiria que mais nenhum abusasse dela, nem na infância, nem na vida adulta; ela odiou a todos, inclusive os inocentes.

Catarina, outra história, foi minha mulher (por que a força atraiu a fragilidade travestida de brutalidade?), contou-me que sua família detestava manifestações emocionais; punições deveriam ser seguidas de silêncio; choros e alegrias extravagantes eram terminantemente proibidos. Ela sobreviveu sim, usando uma muralha de racionalidade para esconder um casebre solitário no meio de si, sua sensibilidade. Sua aversão ao sentimento era tão grande que confundia orgulho com força; humildade com fraqueza; arrogância com poder; e amor com humilhação. A imagem que mantinha de si, tão distorcida, que Catarina, supondo amadurecer, guardava-se emocionalmente com cinco anos de idade e muito me fez infeliz! Quis crescer por toda a vida, almejava a felicidade, mas só conseguiu míseros passos, era uma boa construtora de estruturas metálicas e seus pais, excelentes em alicerces: não era um muro fácil de se derrubar!

Não tivemos filhos (Destino? Planejamento? Azar? Teria atingido o que queria gerando outra vida? Piorado?), ela não suportava a idéia de participar da condenação de mais um à prisão chamada vida. Um tempo de separados, Catarina juntou-se a outro (jamais vivera sem um homem por perto), Frederico; inicialmente pseudo-felizes (porque fácil fantasiar; difícil conviver com a realidade), amargurados logo depois, enclausuraram-se em conchas: ela se suicidou criando um imenso câncer na barriga; ele continuou a beber.

Frederico, surpreendentemente inteligente, incapaz de se relacionar senão consigo mesmo (e até disso tenho cá minhas dúvidas), não sufocou à toa os poucos sentimentos que Catarina ainda manifestava: fora espancado por peraltices e sem o menor motivo durante a infância e adolescência por sua mãe neurótica e pelo pai alcoólatra; o alcoolismo do pai foi resolvido concomitantemente com a separação do casal; sua mãe—descontrolada pela perda—expressava sua dor em forma de socos e chutes regados a xingamentos que o fizeram acreditar, até a velhice, que era verdadeiramente deformado fisicamente, uma aberração! Construiu, assim, para si, um universo fictício e isolado: passara a infância em bibliotecas e acabara por amar os livros; no final da adolescência se trancara num apartamento que dividia com um colega de faculdade que o obrigava a ouvir noites a fio os seus grunhidos de amor com eventuais namoradinhas (sabia muito bem ser um capacho discreto!); na fase adulta se portou como uma criança diante da mãe (nunca abandonara os dez anos de idade!) e se masturbou compulsivamente para suprir a carência que passou a ser seu único jeito de entender a vida. Conhecera Catarina totalmente embriagado e, reconhecendo a avareza relacional um no outro, sugaram mutuamente suas forças; ele continua vivo (?), ébrio, certamente; minha Catarina?...

Dona Eulália, mãe de Frederico, fora um bebê rejeitado pela mãe solteira. Viveu desde a primeira infância na casa de uma família que a tratava como escrava: era surrada, trabalhava sem cessar, não recebia salário, o açúcar que lhe davam era o acúmulo depositado no final de todos os copos; segunda guerra, época difícil! Dona Eulália não conhecera o amor, só o açoite. Quando conheceu Chicão, pai de Frederico, familiarizou-se: ele jamais a importunaria com a dedicação e o carinho. Gerou Frederico em meio ao caos e com um cuidado preciosista alimentou-o com tudo que herdara da vida, uma mão pesada!

Frederico uniu-se a Catarina, que fora casada comigo. Eu sou aquele que aprendeu a ver injustiça e não me meter; conheci uma mulher revestida de proteção e recheada de feridas interiores e colaborei com sete ou dez tijolos para a sua fortificação; observei a degradação dela a ponto de não nos suportarmos mais; sou o mesmo que notou o câncer corroendo seus órgãos e nem sequer a incentivou a se tratar ou a deixar Frederico, parte do verdadeiro tumor; sou aquele que vislumbrou numa noite a imagem do marido da ex-mulher todo ralado, sangrando e caído na barca, tão bêbado era seu estado, e só olhou, jogando a seus pés duas cédulas para que comprasse mais pinga; sou quem se denomina espectador, talvez espião; o que convida: a todas as repulsas, brindemos!

How a Good Boy
Gets Corrupted

I noticed that fooling the lying girls made Clarissa happy and,
maybe for that, and also because doing evil
soon becomes a habit, I took a liking to lying to them.

Simone Zied

, mas eu não nasci mentiroso não (quem nasce?); sempre tive uma boa índole, pelo menos é isso que papai diz, que eu sou um menino de índole boa; acho que ele, ao falar assim, quer mostrar pra todo mundo que a minha natureza não é má e, talvez, por ser um educador nato, procura me convencer disso e consegue! Me sinto um bom caráter, amigo fiel, cheio de virtudes e jamais me deixo levar pelos vícios dos outros garotos da escola. Olha só: nunca fumei guimba de cigarro, nem experimentei loló, não xingo palavrões pesados e só uma vezinha eu bebi um pouco de cerveja quente do Tonhão, mas achei amarga e prefiro guaraná; também sou estudioso, pode-se dizer exemplar; então logo se vê que sou mesmo decente! Nem mentir eu gostava... não gosto... mas acho maldade o que elas faziam com a minha priminha menor. Ela, tão lindinha, e as duas a gozando às escondidas. Aquilo partia o coração e, com vontade de ser justiceiro, um herói meio sem-vergonha, admito, passei a enganá-las. Foi então que Clarissa notou o que se passava e se divertiu a valer com a situação; eu, menino apaixonado que sou, gosto de vê-la tão feliz e alegre, sem aquele ar pesado, com carinha fechada, ou com o jeito de boba que fazia quando Laurinha e Fátima mentiam pra ela e comiam os doces que eram para nós quatro. Ela ficava ali, perdidinha, ligeiramente desconfiada, mas não falava nada nem as seguia; se um dia ela fosse atrás da sua irmã e prima tudo se resolveria, elas seriam desmascaradas e eu estaria livre de qualquer erro. Mas não, ela, quietinha, na dela, se mantinha com um pequeno beicinho, só que o choro nunca chegava; os olhos marejavam, mas lágrima mesmo não havia. Eu, um católico apostólico romano, juro que se elas não me metessem no bafafá não teria me tornado mentiroso; mentiroso não, que é palavra muito forte para uma pessoa como eu, me tornei enganador; é, assim fica melhor de se dizer: passei a enganar minha prima e irmã. E a culpa foi das duas, lógico, elas praticamente pediram por isso: sempre souberam de minha quedinha por Clarissa e o tantão que ela confiava em mim... confia! Agora mais do que antes! Como eu podia passar a perna na coisinha mais fofa deste mundo e, pior, em alguém que acreditava piamente em mim? Foi isso que me invocou e não gostei nada do que elas aprontavam. Podia ter ficado sem dizer à Clarissa o que acontecia, mas aqueles olhinhos observando os meus, olhando fundo, querendo ver se eu seria sincero com ela, falando Vini—é assim que ela me chama: "Vini"—você está sabendo de alguma coisa?! Ela quase afirmou o meu conhecimento; um que eu, aliás, tinha a contra-gosto. Papai sempre fala essa palavra quando algo ocorre e ele não está satisfeito e mesmo assim, "a contra-gosto", continua a resolver a situação; porque, saber das armações de minha irmã e de Fátima, não foi de meu agrado; me senti até magoado, elas sabiam da perversidade de ambas ao procurarem me fazer cúmplice das tramóias, contra alguém tão frágil que só tinha a mim para acreditar. Eu, mais velho de todos os primos (se bem que contato diário só tínhamos com Clarissa e Fátima), sou meio que o guardião dos demais e Claclá, além de três anos mais nova, é meu xodozinho! Pedir pra eu iludi-la foi pilantragem comigo e com ela. Mas, já disse, houve um tempo em que eu sabia das armações das meninas e não falava nada, só que, agora, diante do olhar de Clarissa, as coisas mudaram: disse que sabia sim o que Laurinha e Fátima faziam, contei que passavam a perna nela quando os doces de vovó chegavam em casa; falei do prazer mórbido (outra frase paterna) das duas ao verem que ela engolia cada fraca história inventada para a engabelar. Minha pequena ouviu tudo sem dizer uma palavrinha sequer com seus lábios rosados marcados pelos dentinhos tensos. Piorei a situação, pensei. Foi, então, que me veio à cabeça a idéia de manter Clarissa informada das malandragens das meninas e de nós dois fingirmos que elas continuavam bem-sucedidas nos seus maus empreendimentos. Os olhinhos de minha priminha umedeceram de alegria, me realizando! Muitas vezes eu tenho acesso aos doces antes dos demais, porque sou quem os busca em casa de Vó Gilda, por isso pude passar a separar uma boa cota pra Clarissa, depois voltava a amarrar o embrulho e, na hora da gula, nem dava pra reparar que ele já havia sido desfeito. Além disso, virei uma espécie de mexeriqueiro: dizia a elas que Claclá não era tonta como imaginavam e que era, na verdade, até meio sonsinha e que eu, no lugar delas, tomaria mais cuidado. Elas gargalhavam não dando crédito às minhas informações; contava tudo para a minha princesinha e ríamos juntos. Um dia, Clarissa deu a entender a Laura e a sua irmã que sabia das maracutaias das duas e elas, como dois animais raivosos, vieram pra cima de mim, tirando satisfação. Eu, nos meus vividos 13 anos, já familiarizado com a arte de iludir, me fiz de vítima e de magoado com a acusação; não sei direito como, mas reverti a situação e de culpado me tornei o acusador: minei a amizade entre Laurinha e Fátima, nossa prima. Um dia, em casa, disse à minha irmã: Por que você acha que fui eu que contei à Clarissa sobre os doces que você escondeu? Já pensou que pode bem ter sido a Fátima que abriu o bico? Pense, Laurinha, desta vez ela não comeu os doces com você, não se lembra da bruta dor de barriga que ela teve? Além disso, elas são irmãs e pode ter facilmente se distraído entre uma penteada nos cabelos das bonecas ou no preparo das papinhas e ter deixado escapulir o seu segredo (não deixava que ela se tocasse que o segredo era de ambas); e vai ver ainda que ela ficou chateada com você por algum motivo que não sabemos e, só por vingança, contou tudo à irmã. E você, bobinha, duvidando de seu irmão, né? Laurinha se comoveu (aí percebi que eu deveria ser advogado), me pediu até desculpas, que, em meio a umas palavras amarguradas da minha parte, acabei por aceitar. Mais tarde, Fátima, sabendo do quanto me senti traído por elas não confiarem em mim, me paparicou até não poder mais. Me fiz de durão, demorei a abrir um sorriso novamente pras duas e elas pensaram que conseguiram, às duras penas, reconquistar minha amizade, então cedi. Clarissa e eu, nesse período, nos divertíamos muito enquanto eu narrava em que parte da farsa representava. Fomos felizes como nunca! Meu amor crescia e, um dia, de tanta felicidade, ela me deu um beijinho especial no rosto: foi um beijo apertado, molhadinho, adorei! Aquilo me incentivou e, em vez de parar por aí, fui levado a inventar mais uma ou outra história para fazer as duas de idiotas. Notei que enrolar as mentirosas fazia bem à Clarissa e, talvez por isso, e também porque fazer coisa ruim vire logo mania, peguei o gosto de mentir para elas. Ah, a briguinha de Fátima e de Laurinha não durou três ou quatro dias, depois voltaram às boas e nem deu pra eu me sentir culpado. Mas sempre acontece aquele dia: o que mais tememos, o fim do encanto, fim do jogo; e ele chegou sem cerimônia alguma, chutando meus risos e minhas delícias ao lado do meu anjo. E esse dia escondia uma vontade, a da própria Clarissa: ela decretou (papai adora essa palavra e decretos são feitos a toda hora lá em casa) que as meninas já haviam pagado o suficiente e que ela não ligava mais pras molecagens das duas, porque se sentia mais esperta do que ambas. Aquelas frases ditas assim, tão simples ainda que duras, gelou meu coração; eu precisava da intimidade que a trama nos proporcionava, a cumplicidade não seria mais a mesma, porque logo poderíamos perceber extravagâncias cometidas nos atos punitivos direcionados a elas, e se Clarissa me julgar mau? Temia. Ela disse num tom carinhoso, mas firme, que eu deveria parar com minhas artimanhas por ali. Falou isso, me agradeceu, fez um cafuné em meus cabelos e colocou um docinho da vovó na minha boca entreaberta. Comi, todavia o gosto era amargo. Não quero parar!, ardia dentro de mim, e se esfriasse a amizade? Tentei convencê-la a continuar, afinal era só uma brincadeira, mas ela estava decidida, não queria mais e pronto. Argumentei dizendo que se "ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão", enganador que ilude mentiroso nem precisa ser perdoado. E ela, com uma carinha tristonha que mais ninguém sabe fazer, disse que perdera a graça e que não se sentiria bem continuando com aquilo. Por causa dela parei. Parei, mas voltei: não agüentei, já estava habituado demais a enrolá-las e não consegui me controlar; só não faço mais isso às vistas de Clarissa, aliás, quem eu também passei a enganar, entretanto, ela, por pura proteção! Laurinha e Fátima, sem desconfiarem até hoje de minha malandragem, pensam que sou santo. Bem, como meu pai sempre me diz, boa formação eu tenho, honestidade foi semeada em mim, sem sombra de dúvida sou bom sim, mas que elas merecem ser iludidas, ah, isso merecem! 

One-Note Thought

I heard more than I saw, I bended my knees and almost on all fours
started to retire my crooked soul to the updated past;
then I decided to come back: I wanted a confirmation.

Simone Zied
"(…) seca tuas lágrimas 
porque não é o momento de chorar. 
Teus olhos devem permanecer claros 
a fim de que a pouca luz 
que lhes resta não seja embaciada 
por tuas lágrimas." 
(Marguerite Yourcenar) 

Minha mente é pequena e penso somente de um jeito; por isso nunca me considerei apta para línguas, maneiras diferentes de se dizer coisas muito parecidas; sofri também porque me apresentava frente a uma pessoa importante e diante de um indigente com as mesmas palavras, assim treinei-me a não falar palavrões: não saberia usá-los em momentos apropriados e acabaria falando-os em horas erradas; pra mim tudo é uma coisa só!

Daí surgiu a dificuldade, o estreitamento do raciocínio, por isso, quando uma de minhas tias me preveniu que meu pai era safado e olhava para as pernas de Tia Alzira com cobiça, não dei muita atenção; eu refleti: admirar não é tocar; daí até concretizar o ato imaginei haver distâncias: pura meninice! Comprovei isso alguns poucos meses mais tarde quando o peguei precisamente enroscado em Tia Zira; uma decepção, só a primeira...

Mais tarde houve outra, quando percebi que jamais controlaria coisa alguma em minha vida e que a minha tentativa de dominação sobre mim mesma e sobre outros era totalmente vã; essa vontade?, o que me consumia. Cair na real, sempre me foi dolorido demais, ainda hoje produz em mim uma sensação estranha, aquela que tenho quando ainda estou dormindo e a parte onírica já se extinguiu!

Percebi que a armadura que jamais soube me livrar permanecia pesada em meu corpo de 47 anos: a mesma que trago desde os nove, quando assisti à cena Pai-Tia Zira. Aprendi a polir minha couraça; escolhi uma pesada que oprimia e apertava meu corpo infantil; se estivesse nua, me cansaria bem menos: o problema é que, devido à cultura moralista que ainda carrego, a nudez—seja ela qual for—sempre oferece perigo e expõe fealdades, assim, para esconder meus defeitos e resguardar a humanidade de assistir a um corpo ignóbil, usei maquiagens-máscaras, armaduras tinindo de brilhantes e um elmo invejável: minha fragilidade estava protegida, pensei. Perguntei um dia a um amante se aprender a andar nua, sem temer as flechas, era algo concretizável; não obtive resposta; todavia respondo por mim mesma: percebo que as setas sempre serão atiradas em mim—com ou sem um colete protetor—e, o pior, não importa o quanto eu esteja revestida de amparo, ainda assim elas me atingirão; o que me leva a uma lógica conclusão: nenhuma armadura que confeccionei para mim me privou de alguma dor e só gerou mais peso nesse meu corpo amassado.

Tia Zira tinha seios firmes, uma boca suculenta e umas pernas que só se encontram em corpo de mulata; justifico meu pai: ela, estonteante girassol, girava e girava a sua cabeça, a de meu pai... homens! E agora ele aqui, tão velho e doente, ainda me fazendo reviver aquela cena estúpida, quando aceitei a cédula com a advertência "olha a harmonia familiar!"; os brincos—que sonhava e adquiri—guardo na caixinha lilás; recordam-me peremptoriamente o meu compromisso; ecoam o "é uma única nota, mas você poderá comprar muitas coisas com ela, benzinho, até um vestido"; preferi os brincos, optei por algo que tapasse meus ouvidos, naquela época ainda queria minha carcaça descoberta!

Impressiona-me reviver o passado com tanta fluidez; é presente e estamos jantando, todos nós, só a família, agora meu pai sofre de falta de oxigênio no cérebro e desmantela-se na frente de todos com pequenos desmaios; não o vejo há muitos anos e me parece que esses episódios só produzem desconforto em mim; não agüento: diante da cabeça pendida para frente, improvisando uma pintura facial produzida por molho de macarrão (meu pai se transforma em um fantoche ridículo), minha reação é imediata: levanto-me e corrijo o seu corpo agora tão miúdo e flácido; ele desperta; limpo a máscara vermelha e ele se sente grato ao mesmo tempo que envergonhado; pensei-o acostumado, disseram-me que há um tempo que isso ocorre, talvez seja ingenuidade minha: quando a mente é sã, nunca se acostuma com a doença!

Foi então que me assombrei ao procurá-lo em um quarto arranjado como sala de leituras e ver a cena se repetindo diante de mim: aquele homem, atual velho moribundo, recebendo afagos sexuais da enfermeira, mulata nova; olhei novamente e vi traços da tia, mas tenho a mente bitolada e pode ser vontade de ver uma coisa só: dói menos!

Mais ouvi do que vi, agachei meu corpo e quase de gatinhas fui recolhendo minha alma torta para o passado atualizado; depois, não sei que raios me deu na cabeça, voltei: queria confirmação, certeza, não poderia julgar sem uma prova concreta; e ela estava lá: Tia Alzira, velha hoje, se remoçava pela carne daquela auxiliar de enfermagem e tirei qualquer dúvida que no futuro eu pudesse inventar. Mexi na porta, fiz isso porque, acredito, desejava ser descoberta (o que eu ganharia dessa vez para manter o silêncio cândido, gerador de paz?), mas me arrependi e tentei fechá-la novamente—ato falho? Ou nervosismo autêntico? _, minha tremedeira tornou meu movimento impreciso; fui ouvida pela mulata.

Caminhei como se levasse um soco no estômago e, curvada, me deixei ficar no cantinho do hall em posição fetal (os exercícios de ioga sempre foram bons para mim). Ali fiquei, de sete a dezoito minutos, calada, com uma lágrima pendurada em uma pálpebra, negando-se escorrer pelo meu rosto murcho, mantendo meu olhar embaçado e fantasmagórico. Fátima, a enfermeira, se aproximou de mim: ela sabia melhor do que eu o que acabara de acontecer; meus anos diminuíram e os nove retornaram, meus olhos se arregalaram frente àquela mulata bonita e esperei, qual aquela criança de outrora, as diretrizes que me forneceriam o passaporte para mais uma infelicidade, lugar corriqueiro onde vez ou outra eu compro artefatos para construir a maior de todas as couraças que jamais possuí.

In the original Portuguese, these short stories are called "Antes a medicina alternativa?," "Sino Anelar II," "Aprendiz de demônio," "Do que não sei o nome eu guardo semelhanças," "A todas as repulsas, brindemos!," "Compulsão ou como um menino bom corrompe-se," "Pensamento de uma nota só."

Simone Zied was born in Niterói, Rio de Janeiro state, where she graduated in education from Universidade Federal Fluminense. The author is also master in education philosophy from Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) and is getting her PhD in literary studies from Universidade Estadual Paulista (UNESP). Readers can write to her at simonezied@uol.com.br


Send your
comments to
Brazzil

Brazil / Organic personal skin care wholesale / Brazil