Brazil - BRAZZIL - "Gudrun" by Janer Cristaldo - Short story - Brazilian Literature - December 1997


Waiting for Gudrun

He finally felt he was living among humans. Gone was the chaotic and miserable fauna that he didn't want to see ever again. Here he had people maintaining their dignity even in their old age. All well dressed, parsimonious on color, taciturn, superior. Without material concerns, their only suffering was from their human condition. They would suffer as men not as animals.

Janer Cristaldo

I

Estava já há cinco meses em Estocolmo. Havia deixado para trás, com um oceano de permeio, toda aquela fauna abjeta de mendigos, indigentes e aleijões que infestavam as ruas imundas das cidades que abandonara. Agora, na capital européia de mais alto padrão de vida, seu único contato com a América Latina era alguma reportagem do Time ou L'Express. Via como algo distante, totalmente alheio a seu passado, os relatos irônicos dos comentaristas internacionais sobre os golpes e contragolpes, convulsões e fuzilamentos, carnaval e futebol, miséria e ostentação. No Chile, generais haviam libertado a pátria dos tentáculos da hidra vermelha, a Bolívia estaria no 108º golpe. Ou 180º? A diferença não fazia diferença alguma. No Paraguai, mais um criminoso de guerra havia sido descoberto por um caçador de nazistas. Na Argentina, a nação toda chorava a morte de Perón, no Brasil um povo inteiro estava de luto por ter perdido uma partida de futebol para a Holanda. Perdera o título de campeão mundial de futebol, mas não havia há pouco conquistado o primeiro lugar no mundo em desastres de automóveis? Viadutos continuavam caindo regularmente no Rio, arranha-céus queimando em São Paulo, a seca matando no nordeste, as enchentes no sul. Em Recife, alguém descobrira um modo eficaz de ganhar seu pão: cortava o corpo com uma lâmina desde que lhe jogassem dinheiro. O corpo sangrava, as moedas choviam.

Nos ombros lhe pesava a vergonha de um continente inteiro.

Cinco meses de solidão quase total, numa cidade que parecia situar-se em outro planeta que não a Terra. Chegara em pleno inverno, o dia se resumia a um cinza-escuro carregado, das nove da manhã às quatro da tarde. Sol, só em cartazes de agências de turismo. Na primeira semana achara tudo lindo, o frio seco, a neve caindo em flocos, o céu plúmbeo comprimindo a cabeça. Já na segunda, o snösörja, aquela neve lamacenta que grudava nos sapatos, passou a irritá-lo, não sentia mais no rosto com o prazer dos primeiros dias as nevadas mais violentas.

Cinco meses sem mulheres nem amigos. Poderia tê-los buscado entre brasileiros, mas recusava-se ao recurso fácil. Estava lá para tomar um banho de civilização, repelia a idéia de conviver com a colônia latina. Fugira do samba, futebol e miséria, não iria aturá-los só por sentir-se solitário. Mas amigos não era a maior carência. Sempre vivera relativamente só, sua viagem fora em parte uma fuga da loquacidade estéril e do maldito espírito de camaradagem e calor humano de um país quente, onde o grande drama não era a solidão, mas sim a possibilidade cada vez mais rara de ficar-se só. Às favas os latinos e suas expansividades. Lembrava Pessoa:

Todo mal do mundo
vem de nos importarmos uns com os outros,
quer para fazer o bem, quer para fazer o mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.

Os espécimes que encontrara! No primeiro dia, fazendo um reconhecimento na Sergeltorget, ouviu sons familiares em uma esquina. Abraçado em violão, alguém se esganiçava, enregelado, barbudo e com ar faminto. Eu tenho uma nega chamada Teresa, cantava. Ou melhor, implorava. No chão, um chapéu esperando uma moedinha supérflua dos bolsos mais ricos da Europa. Enfim, não deixava de ser uma forma de difusão da cultura tupiniquim no exterior. Olhou-o de longe, não quis se aproximar temendo ser reconhecido pela roupa ou traços.

Uma semana depois, num supermercado, quando tentava descobrir o que seria leite em meio a pacotes com inscrições em sueco, ouviu duas mulatas do outro lado da gôndola planejando carreteiros e feijoadas. Abordou-as, pediu que lhe mostrassem o que era leite. Abraços, efusões afro-latinas, perguntas, convite para visitas, caipirinhas, trocas de endereços. E ele só queria uma informação. Mania insuportável do brasileiro de mostrar-se amigo quando em terra estranha. Apanhou os endereços, mais por cortesia, nem de longe pensava em visitá-las. Estavam há vários anos na Suécia. Ao chegar em casa, descobriu que lhe haviam indicado iogurte em vez de leite. Ao que tudo indicava, as moças não se haviam interessado muito em aprender o idioma.

E os outros! Maconheiros que se achavam no paraíso por não existirem proibições ao haxixe, aventureiros (gostava de chamá-los de lavadores internacionais de pratos) que haviam trabalhado nas cozinhas e latrinas de hotéis e restaurantes de todas as capitais da Europa, sempre carregando uma mochila e uma mentira: estou provisoriamente nisto, volto logo para meu curso em Roma, meu estágio na Patrice, para meu doutorado na Sorbonne. No entanto, lavariam pratos até o fim de seus dias, embalados pela ilusão de estar conhecendo a Europa, quando na verdade dela só conheciam os porões, o submundo latino, árabe ou eslavo, que implorava aos europeus as migalhas de suas farturas..

E mais os "revolucionários". Os exilados de 64, gigolôs da ingenuidade da juventude européia, que planejavam a retomada do poder nos salões da ABF, no bar da Filmhuset, em aconchegantes restaurantes em Gamla Stan ou nos aposentos nada austeros do hotel Anglais.

Não. A tais amigos, preferia estar só. Disto não tinha queixas. Mas o sexo já lhe subia à cabeça. Cinco meses de jejum. Em Estocolmo. Não fosse estar vivendo o drama, não acreditaria.

Quando fora pedir algumas informações na embaixada, fizera um rápido contato com o porteiro. Esguio, moreno, elegante, físico diariamente exercitado, chamava-se Lira. Dele recebeu algumas informações que lhe economizaram um bom dinheiro e, ao sair, puxou-o à parte:

E não esquece: órgão sem uso se atrofia. Não te constrange em apelar pra mão. Melhor que ficar brocha.

A frase o acompanhara a tarde toda. Não entendia. Piada? Lira não tinha senso de humor para tanto. Conselho de amigo? Absurdo, estamos na Suécia. Drama pessoal? Certamente. Que sensibilidade teria um boxeador (Lira lutara como peso leve), latino, preconceituoso e inculto, para enfrentar uma sueca, independente e cosmopolita? Coitado do Lira.

Lembrou o sorriso orgásmico de um velho amigo, modesto funcionário público, definitivamente preso à sua triste rotina. "Ah! Conhecer as suecas... e depois morrer!" Pois cá estamos para conhecê-las.

Vieram-lhe ainda à memória as declarações de uma atriz nórdica, lidas em alguma revista qualquer: "Meu país é escuro e frio. Quando o sol, que raras vezes aparece, cai abruptamente por trás dos fjordes, só nos resta voltar para casa e fazer amor".

Agora, entendia Lira.

Desistira inclusive de escrever a amigos. Não era dado a mentiras, mas tampouco lhe era fácil escrever que depois de cinco meses na Suécia... nada feito. Mesmo que não tocasse no assunto, as perguntas seriam inevitáveis.

Em seus primeiros dias, sentira-se finalmente entre seres humanos. Não mais a fauna caótica e miserável que não pretendia mais rever, mas pessoas que mantinham a dignidade mesmo na velhice. Todos bem vestidos, sóbrios nas cores, taciturnos, superiores. Sem problemas materiais, seus únicos sofrimentos seriam os da condição humana. Sofreriam como homens, não como animais. Policiais, funcionários, garçons, todos bilingües. Pela primeira vez na vida vira um policial sorrir e tratar pessoas com gentileza. Não lhe desagradou não ter encontrado carregador para a bagagem. Como tampouco engraxates. Nem mesmo considerou indelicadeza a insistência de um policial do Invandrareverket em examinar-lhe os cheques de viagem: "If you have money, you are welcome".

Pois bem-vindo sou.

Na Central Station, ao fundo do saguão, a palavra SEX, imensa e vermelha, lhe chamara a atenção. Sentiu-se vagamente ludibriado ao chegar mais perto e ler:

LUNCH
SEX
KRONOR

Seis coroas, o lanche. Matuto, caíra na arapuca. Fora sua primeira má impressão do país, logo diluída pelos ônibus que cumpriam horários com precisão de segundos, mulheres dirigindo metrôs, louras oníricas fazendo parte de seu dia-a-dia. O acesso a elas não estaria distante. Seu inglês era sofrível, melhor nada tentar antes de conseguir um domínio pelo menos operacional do sueco.

Em três meses, aprendera o suficiente para comunicar-se eficazmente. Conseguia entender o que ouvia e fazer-se entender. Mas todas suas tentativas de aproximação com mulheres haviam fracassado.

II

A primeira fê-lo sentir-se ridículo até os ossos. Lera em livros e reportagens sobre a Suécia—e não haviam sido poucos os que devorara—que bastava apanhar-se um jornal e procurar nas últimas páginas os classificados sexuais. Com duas semanas de aprendizado, dicionário em punho, deitou-se em cima do Expressen e Aftonbladet. De fato, lá estavam os anúncios:

SOZINHO?
SEM PRECONCEITO?
38.000 MULHERES DO MAIOR
CLUBE SEXUAL DA ESCANDINÁVIA
ESPERAM POR VOCÊ.
REMETEMOS CATÁLOGOS COM ANÚNCIOS
MEDIANTE O ENVIO DE 100 COROAS.
TROCAM-SE FOTOS NUAS.

Ou ainda:

CONTATOS SEXUAIS?
MULHERES MADURAS PROCURAM
HOMENS JOVENS E DESINIBIDOS.
ENTRE AS 20.000 MULHERES DE NOSSO CLUBE
ESTARÁ CERTAMENTE A DE SEUS SONHOS.

CONTATOS HONESTOS.
CATÁLOGO COM CERCA DE 400 ANÚNCIOS
É REMETIDO POR 25 COROAS.

E vários outros. Uma leve desconfiança ante os que falavam em contatos honestos. Preferiu pagar mais e pediu a remessa do primeiro. Duas semanas transcorreram de olhadelas diárias à caixa de correspondência. Chegou enfim um gordo envelope.

Páginas e mais páginas em sueco. Na primeira, adivinhou uma carta comercial de cortesia, deixou de lado. Na segunda, um questionário onde deveria assinar com uma cruz suas preferências sexuais. Nenhuma dificuldade maior de tradução, as mais interessantes práticas tinham nomes universais, em geral de raízes gregas ou latinas. Foi anotando. Tribadismo, sexo grupal, oral, anal, etc. No fim do questionário, um item mais específico a ser preenchido: qual sua particular exigência que desejava ver satisfeita? Deixou-o em branco, seria por demais trabalhoso descrevê-la em sueco ou inglês.

Nas páginas seguintes, o catálogo. Mulheres identificadas por números informavam suas práticas eróticas preferidas, como também pequenos interesses especiais. Mulheres solitárias buscavam parceiros de outro ou do mesmo sexo, ou de ambos, alternada ou simultaneamente. Uma gostava de espancar, outra de ser espancada. Esta insistia em alguém que lhe permitisse urinar sobre o corpo, outra queria apenas masturbar-se enquanto o parceiro a olhava. Algumas pediam dois homens e sugeriam posições que permitissem visão e ação simultâneas. Algumas interessavam-se por espelhos, outras por livros e filmes. Botas e roupas de couro eram bastante solicitadas, como também chicotes e aparelhos de massagem. Havia cardápios para os mais distintos paladares.

Escolheu as que por suas preferências mais o excitavam. No final do catálogo, era-lhe conferido seu número de sócio, ao mesmo tempo em que o lembravam de remeter mais 100 coroas para a identificação dos membros femininos cujos números escolhera. Trinta dias mais tarde, convenceu-se de ter sido ludibriado como o mais imbecil dos turistas.

III

A segunda tentativa, desconcertante.

No subsolo da residência estudantil onde morava havia uma sauna. Só interessou-se pelo assunto quando soube existir, além dos horários masculino e feminino, um horário misto. Na primeira visita, foi dominado por algo próximo ao temor. Sauna deserta. No vestiário, um cartaz alertava:

NINGUÉM O VIGIA.
VOCÊ É O ÚNICO RESPONSÁVEL
POR SUA VIDA.
SAUNA MISTA COM ÁLCOOL
PODE SER FATAL.

Não tinha problemas de saúde, mas sentiu-se um pouco nervoso. Lera certa vez no mural da residência o recorte de um jornal onde se noticiava a morte de um estudante. O cadáver só fora descoberto quatro semanas depois. Em uma república, em um apartamento onde viviam outros três. Encimando o recorte, um apelo:

QUE ISTO NÃO ACONTEÇA
NESTA CASA.
FALE COM SEU COLEGA.

Em certas circunstâncias, o maldito calor humano era até mesmo oportuno. Já cansado e descrendo de que chegasse mais alguém, dispunha-se a ir embora quando ouviu ruídos de chave na porta. Saiu do vestiário e voltou à sauna. Vai ver que era macho. Esperou por mais de dez minutos, a temperatura já próxima dos 90 graus, quando a porta abriu-se e entrou ela, a Sueca.

Nua.

Loura, alta, esguia, escultural, o protótipo nórdico tantas vezes visto em filmes ou fotos. Seu nome seria Ula, a loba. Ou talvez Gudrun, filha de deuses. Com a respiração já opressa, tentou suportar mais alguns minutos naquele forno, de repente mais sufocante com a proximidade daquele animal perfeito. Teria entre 25 e 30 anos, um ar tranqüilo de quem se sente à vontade junto ao outro sexo. Sentou-se à sua frente, os joelhos erguidos servindo de apoio aos cotovelos, pernas entreabertas. Desviou o olhar. Já no limite da exaustão, saiu.

Depois o sutil jogo de calcular o tempo para entrar e sair, de modo a demonstrar total indiferença. Perguntou-lhe a temperatura, alegando estar sem óculos. Trocou algumas palavras fúteis, tentando captar um olhar ou gesto que lhe permitisse um avanço. Não se comportaria como o macho latino que se aproxima da Sueca com a sutileza de um touro no cio. Embora, se quisesse ser honesto consigo mesmo, estivesse se sentindo exatamente assim.

Pensou em falar ou fazê-la falar em algo mais pessoal, mas a insegurança no domínio do idioma tornava-o hesitante. Era estrangeiro, podia permitir-se gaguejar e usar de circunlóquios. Mas temia a primeira frase. Balbuciasse nela, se reduziria à dolorosa condição de latino subdesenvolvido, flácido, carente e monoglota. Ante uma mulher perfeita, bela, esportiva, segura de si, expressando-se com desembaraço em vários idiomas.

Preferiu o silêncio.

O tempo passava, os banhos de ducha se sucediam e a possibilidade de um contato se tornava cada vez mais distante. Teria perdido mais de um quilo, resolveu desistir. Quando já se vestia, a mítica loura nórdica entrou na saleta, gotejante, sorriso afável:

—Queres tomar um café comigo?

Durante quase três horas mantivera, violentando-se a si próprio, um ar indiferente. Para perdê-lo em segundos. Balbuciando palavras atropeladas, aceitou. Ela sorriu e, de um salto, voltou à sala de banho para secar-se. Por sorte já estava vestido, uma ereção incontrolável talvez o tivesse feito sofrer um vexame. Ou não: quem sabe o que se passa na cabeça de uma sueca?

A Suécia começava a tomar sentido. Naquela época seriam já três meses de jejum. Sentia-se radicalmente estrangeiro no país. Diga-se o que se quiser, teçam-se considerações sociológicas ou metafísicas, mas não é o domínio do idioma, conhecimento da cultura nacional ou relações de camaradagem que fazem um homem integrar-se em um solo novo. Só uma mulher, só o conhecimento da mulher, no velho e bom sentido bíblico da palavra faz com que nos sintamos aceitos pelo novo país. A mulher não está aceitando então o amigo, o estrangeiro exótico, o conhecido de uma reunião, mas o homem todo. E o resto é poesia.

No elevador, sentindo-se obrigado a dizer algo, perguntou-lhe estupidamente se gostava muito de café, eu venho do Brasil, país do café Ô, Brasilien, cafê, Pelê, sambá! , embora os nacionais só tomem a borra, o melhor café é exportado, enfim, coisas de republiquetas latinas. No apartamento, ela levou-o para o quarto, perguntou-lhe se já queria o café, logo a ele, que mais que café só detestava o Pelé. Disse preferir antes algo para beber, os vapores do álcool aproximam mais as pessoas, pensou.

No quarto, algo estranho. Um terço pendia da parede, sobre a cama.

Resumindo: despira a sueca, estava também despido e quase próximo ao orgasmo para, após quatro horas de luta, ouvir:

Det sexuella är heligt och hör till äktenskapet.

Não acreditava no que ouvia. Disse que não dominava muito bem a língua, pediu para repetir lentamente. Ela repetiu várias vezes, havia algo errado, seria talvez a entonação, quantas vezes a entonação não dá um sentido exatamente contrário a uma frase? Só se convenceu do que ouviu quando ela escreveu em uma folha, com todas as letras, sem entonação alguma:

DET SEXUELLA ÄR HELIGT OCH HÖR TILL ÄKTENSKAPET.

Muito bem. O sexual é sagrado e pertence ao matrimônio! Atravessara um oceano para ouvir aquilo. De uma mulher com quem passara horas sem roupa alguma. Vestiu-se sem mais palavras. Quando a sueca lhe perguntou se ainda queria o café, quase explodiu em choro convulso. Procurou um restaurante e compensou-se sem medir gastos.

IV

A solidão começava a pesar-lhe. Freqüentava diariamente a cinemateca, sinal inequívoco de que estava só e nada melhor tinha a fazer. Tentou alguma turista desgarrada em busca de aventuras nas pornoshops e sexklubbar. Santa ingenuidade. Quando iam, sempre levavam macho a tiracolo. Prostitutas lhe ofereciam full sex service. Mas não lhe interessava comprar, tudo então seria muito fácil. Queria ganhar. E continuava recusando-se a buscar socorro na colônia latina. Que continuassem encerrados em seus sambas e reminiscências, porres de cachaça e imprecações contra a Suécia e os suecos.

Vagou noites pelas ruas cheias de neve. Em um cemitério, se sentiria mais acompanhado. Só nos subterrâneos do metrô existiam sinais de vida. Adolescentes esculturais, lindas, bêbadas e vomitando nas escadarias, se entregariam por alguns gramas de marijuana. O recurso lhe repugnava. Além do mais, nada tinha a dizer, tampouco a ouvir, daqueles párias da opulência.

Surpreendeu-se certa noite buscando o convívio da confraria universal dos mictórios públicos. Olhares gulosos de senhores respeitáveis, de chapéu, gravata e pasta executiva, lhe percorriam o membro enquanto urinava, os primeiros sinais de interesse que lhe demonstravam os suecos. Não foi fácil resistir à tentação. Calor humano não lhe interessava, queria agora calor animal, e de um animal de qualquer sexo.

Lembrou o conto de um amigo que ficara lá no distante sul. Conto mal narrado, um tanto ingênuo, cheio de laivos românticos, não publicado. Mas com uma imagem poderosa: um homem caminha só pela noite. Ouve passos e segue atrás. Os passos se apressam, o homem também se apressa. Vê um vulto. O vulto corre, o homem também corre. E passa a falar: pára, me espera, quero falar contigo, não quero te fazer mal, te quero bem. O vulto não se detém, se afasta cada vez mais, sobem por uma ladeira. O homem corre desesperado, grita, pára, eu te amo, e cai fulminado por uma síncope. O vulto era de um cavalo.

E aquele seminarista que fora dilacerado por um touro. Na época, considerava o episódio como apenas um caso de homossexualismo reprimido, um gesto temerário. Hoje, entendia a tragédia íntima do seminarista.

V

O inverno foi aos poucos passando, Estocolmo se transfigurava. A grama brotou milagrosamente de onde antes só havia neve, as árvores se encheram de folhas, o que lhe parecia difícil de crer. Os estocolmenses ressuscitavam de suas tocas. Ao menor raio de sol, suecas sentavam-se em um banco ou no chão, abriam as blusas, saias ou pantalonas e, de olhos cerrados, adoravam-no. A atmosfera febril das ruas o contagiava.

Valborgsmässoafton, entrada oficial do verão para os suecos. Foi saudá-lo em torno a uma imensa fogueira em Skansen. A neve lhe caía no rosto, refrescando-o do calor do fogo.

Num estrado, aqueles seres antes calados e taciturnos dançavam como loucos, como se vivessem a última noite de suas vidas. Enquanto os olhava, uma moça sem par convidou-o para o estrado. Tentou acompanhar o ritmo dos bailarinos, em meia hora estava destroçado. A sueca largou-o, agradeceu, disse qualquer coisa sobre sua forma física.

Os dias foram se alongando, o sol tornou-se paranóico, saía às duas da madrugada, deitava às 22. Uma claridade macia substituía a noite. Os suecos em delírio quase não dormiam, caminhavam dia e noite pelas ruas, florestas e ilhas. Tampouco ele conseguia dormir. A luz lhe invadia o quarto, o verão duraria pouco, depois tudo seria neve e escuridão. Às quatro já estava em alguma piscina ou passeando pelos parques que circundam Estocolmo. A temperatura chegava a 28, 29 graus, manchetes anunciavam a "onda de calor", os jornais noticiavam mortes por insolação. Um clima orgiástico pairava no ar.

Mas um homem só não faz uma orgia. Estava na Suécia há cinco meses. Já quase a ponto de fazer concessões. Buscar a profissional, o homossexual ou, na pior das hipóteses, a colônia brasileira. Num encontro casual, Lira lhe falara de uma crioula, quebra-galho dos patrícios. Lira tivera certa vez de recorrer a ela, não via mulher há séculos, a crioula fora mais solícita que uma mãe. Havia ainda aquele número transcrito em um discreto cartaz na sala de aula. "Se você se sente só e deprimido e deseja falar com alguém, telefone para o nº tal". O cartaz, que lhe parecera ridículo quando o vira pela primeira vez, tornava-se agora compreensível.

Se o índice de suicídios na Suécia não era o mais elevado da Europa, como pretendia uma propaganda safada, um outro fato o deixara perplexo: não era incomum, pelo que lia nos jornais, encontrar-se cadáveres em apartamentos fechados, meses após a morte. Dado o clima frio, o corpo não se decompunha, e só era descoberto quando se acumulavam as contas a pagar.

Os suecos, que antes julgava conhecer por antecipação, lhe surgiam ininteligíveis. Haviam erguido uma sociedade que protegia o cidadão, qual placenta, do berço ao túmulo. Mendigos não existiam, ninguém passava frio ou fome, o Estado garantia saúde a todos. Para chegar aonde?

A uma sociedade onde as pessoas, sadias e bem alimentadas, apodreciam sozinhas em seus quartos, onde era necessário pôr um telefone à disposição dos suicidas potenciais. Confundia-se. Já não sabia se preferia morrer de doença e subnutrição, entre amigos, ou ser bem nutrido e saudável na sociedade perfeita, mas só, irremediavelmente só, até o último alento.

Mas nenhuma voz metálica de algum psicólogo ou padre teria algo a dizer-lhe. Não queria palavras. E sim carne, calor animal, festejar um outro corpo, perfurá-lo com amor e raiva. Ouvir gemidos, sentir nos dedos convulsões, ver olhos cerrados, lábios em espasmos, sorrisos, contorções.

Temia por sua sanidade mental.

VI

Caminhava pela Vänsterlanggatan. Gostava da rua e de Gamla Stan, o casco velho da cidade. Quando se perguntou por quê, descobriu já não ser o mesmo homem que há cinco meses chegara na Suécia. A arquitetura asséptica e funcional de Farsta ou Hässelby lhe haviam fascinado, detestava cidades velhas e sujas. Começara agora a encontrar um certo encanto em Gamla Stan. Não na rua em si, mas nas pessoas que a percorriam. Ou nos sinais impregnados nos portais e escadarias de pessoas que ali haviam passado. A calçada estreita e íntima, os séculos incrustados nas fachadas, o ambiente cálido das caves do Fem Sma Hus, a efusão quase latina do Kaos (certa noite, o acordeonista do café começou o espetáculo com um "baião francês", o "Tico-tico no Fubá"), a alegria coletiva do Ängelen, tudo o reconciliava mais e mais com a Cidade Velha.

Passava pelo Old Town, alguém o chamou de dentro. Arne, um de seus professores de sueco.

Entrou. Arne convidou-o a sentar-se. Apresentou-lhe uma colega, Gudrun. Mesmo bêbado, Arne continuava pedagógico, falava pausadamente, auxiliava-o a completar uma frase. À medida que os skal se sucediam, ele falava com mais fluência, dominava até mesmo certas nuanças do idioma. Gudrun, afável, falava-lhe carinhosamente, como a um bom amigo.

Se os suecos eram frios, o álcool os aquecia. Não bebiam para conversar, mas para cair. Acostumado a longas noitadas de trago, ele fraquejava ao enfrentar ao estilo nórdico de beber: iam da cerveja ao ponche, passando pelo uísque, conhaque e akvavit, com alguns cafezinhos de permeio. Quanto mais bebiam, mais Gudrun tornava-se meiga, passou a roçar-lhe a nuca com mão suave. Arne convidou-o para uma pequena festa em sua casa naquela noite. Como estaria envolvido com os convivas, em grande parte estrangeiros que mal arranhavam o sueco, lhe sugeria fazer companhia a Gudrun. Dois olhos verdes e uma boca cereja pediam que aceitasse.

Arne morava em Saltsjö-Duvnäs, a alguns quilômetros de Estocolmo, numa casa velha e simpática de dois andares, com piscina e muitas árvores. Apesar de seu status, só andava de metrô ou em uma bicicleta caindo aos pedaços. E de novo a pátria lhe pesou nos ombros. O Brasil começava a descobrir o automóvel, quando a Europa já o dispensava como meio preferencial de transporte.

Reunidos ao lado da piscina, os grupos se elegeram conforme idiomas. Ele afastou-se de eslavos, gregos e outros grupos, por instinto buscou Gudrun e outros suecos. Era ouvido com interesse, todos esperavam encontrar num brasileiro um homem extrovertido, cheio de sol e ritmos, viam um conhecedor de Swift, Nietzsche e Sterne. Não lhe foi fácil desmontar a imagem mítica de um Brasil grotesco, que Glauber Rocha exportara cabotinamente a um mercado sedento de coisas exóticas. Então não existiu um herói nacional, o Lampião? Como iria existir um herói nacional, se nem heróis estaduais ou municipais existiam na história toda do país?

Um grupo maior foi aos poucos se formando, alguém já havia caído vestido na piscina, uma loura fora buscá-lo com roupa e tudo, estava agora enrolada em uma toalha exígua, a noite que não era noite não escurecia nunca, as velas queimavam sem pressa, todos falavam alto, ninguém ouvia nada, todos se entendiam, a atmosfera stämningen, pois não? tornava-se mais e mais calorosa. Alguém apanhou um violão, as primeiras canções foram Cielito Lindo, Adelita, La Paloma. Todos as conheciam e as cantavam nos mais estranhos sotaques. Ele acompanhou-os com gosto. Lembrou então que fariam não cinco meses, mas cinco ou talvez mais anos que não cantava. A última e triste década que vivera em sua terra, marcada pela violência e barbárie escondidas em estatísticas lindas, onde pesadelo e realidade se confundiam, não lhe davam razões para cantar.

...este lunar que tienes,
Cielito Lindo,
junto a la boca...

Passaram a uma sala. Gudrun arrastou-o pelo braço, queria dançar. Uma eletrola pulava ao ritmo de sambas. Não. Tudo, menos samba. Cielito Lindo, Adelita, passava. Nada tinha contra o México, pelo contrário. Mas samba! Aquela batucada trazida pelo negro escravo que nela se embriagava para afogar o cativeiro, a miséria, a humilhação? Não.

Além disso, nunca dançara samba em sua vida.

Concedeu em segurar Gudrun pela cintura, que se requebrava em passos de todas as danças do mundo, menos de samba. Ele movia lentamente os pés. Mas o ritmo ingênuo da sueca, os olhos que fechados o convidavam, o ventre que se oferecia e fugia, seios trêmulos, o álcool, o ruído, tudo fez com que, sem saber nem querer, acabasse sambando. Pela primeira vez na vida. Em Estocolmo.

Não via mais ninguém na sala, só os olhos, braços e boca daquele animal que debatia a seu lado, já quebrara um imenso vaso de porcelana, uma mesa ficara torta, teve de puxá-la com energia para salvar o toca-disco. De repente, desceu os olhos além da boca de Gudrun, sem crer viu-a nua, só de calcinhas. Olhou em roda, não poucos já estavam nus, um par de seios saltitava a sua frente, viva la Suecia, viva el paradiso del amor, lever Sverige, per omnia saecula saeculorum, amen!

Despiu-se pulando, já ia tirando as cuecas, lembrou-se que talvez não ficasse lá muito elegante pulando sem cuecas. Arne convidou para a sauna, da sauna pularam na piscina, ele sempre rente aos pés de Gudrun. Da piscina saiu a persegui-la, ambos nus por entre as árvores, sob aquele sol irreal que jamais se escondia. Derrubava-a, apertava-a sobre a grama, Gudrun ria e fugia, escorregadia e molhada, ele fauno caçava Gudrun ninfa por bosques onde o sol jamais se escondia.

Perdeu-a não soube como, vagou sob o sol branco por entre as árvores, gritava Gudrun jag älskar dig, kom hitvar är du, eu te amo, vem cá onde estás? Volta, eu te quero, pára, me espera, não quero te fazer mal, te quero bem.

Ninguém voltou. Nu e já com frio, rumou para a casa.

Todos já haviam partido ou dormiam. Alguém saindo do banheiro perguntou-lhe se queria uma cama, disse não, continuou procurando. Numa peça dormia alguém, apertou-a, beijou-lhe o rosto, quem és tu, nenhuma resposta, não conseguiu reconhecê-la, pelo menos estava certo não era Gudrun, não eram seus seios.

Subiu ao primeiro andar. Tudo também deserto. A casa, onde há pouco tudo era vida, de vida nada mais tinha. Quando já desistia de encontrar alguém, quando lembrou-se de que estava nu e nem imaginava onde estariam suas roupas, num sofá, viu Gudrun.

Deitada de bruços, esperava.

Jogou-se nela como náufrago buscando tábua, qual criança encontrando outra que se escondera. Corpo perfeito e nu, aberto, sem defesas. Penetrou-a com amor e raiva, eu te adoro, te quero, vou te rasgar, não podes mais fugir, te peguei, toma todo eu, até o fim, até o fundo, imbecil querida, idiota amada, vingança.

Gudrun dormia. Bêbada, dormira sempre. Sua primeira sueca fora uma espécie de cadáver ainda quente.

"A Conquista de Gudrun" is the original title of this short story. Janer Cristaldo, its author, is a writer, translator and journalist. He got a Ph.D. in French and Compared Literature from Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III) with the thesis La Révolte Chez Albert Camus et Ernesto Sábato (The Revolt in Albert Camus and Ernesto Sábato). He published among other books: O Paraíso Sexual Democrata (The Democratic Sex Paradise) (essay) , Assim Escrevem os Gaúchos (Thus Write the Gauchos) (anthology), A Força dos Mitos (The Power of Myths) (crônicas), Ponche Verde (Green Poncho) (novel), Mensageiros das Fúrias (Messengers of the Furies) (essay). You can get in touch with him via his E-mail: cristal@ibm.net  

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