Brazil - BRAZZIL - "Marta-Maria" and Two Other Stories by Cecilia Prada - In Portuguese - Brazilian Literature - Portuguese Language - Brazilian Books & Authors - Short Story - December 1999


Brazzil
December 1999
Literature

3 by Cecília Prada

At the Lord's Feet

The Master was an only son, one of those who never played soccer as a child. He cared a lot for his hair, combed his beard, did Canadian Air Force exercise every morning and screamed : —Martha, my underwear!

Cecília Prada

E aconteceu que, seguindo seu caminho, entrou Jesus em uma aldeia: uma mulher, por nome Marta, o hospedou em sua casa. E esta tinha uma irmã chamada Maria, a qual sentada aos pés do Senhor ouvia a sua palavra.
(Lc. 10, 38-39)

Marta varria e escovava, limpava os camarões, ia à feira. Maria, nem uma mãozinha. Ficava escovando os cabelos de ouro, Maria-a-Linda, sentada aos pés do Mestre—que gostava muito.

Marta corre que corre, espana que espana. Maria toda lindinha, a cabeça reclinada nos joelhos do Mestre, lendo Vogue. O Mestre de vez em quando sacudia os cachos, tirava do ar aquela mão-que-sempre-abençoando, bem que passava a mão em Maria, assim, assim.

Ela se babava. Marta, de cara enfarruscada, limpava os camarões, jogando a tripa por cima do ombro: acertasse neles.

Maria toda lindinha, toda manhã se compondo naquela pose de estampa, toda meigolenta, pescocinho virado de um lado, os olhos para cima... Maria tava até com dor de pescoço entortado. Além de estar engordando por falta de exercício. Mas o que fazer? O Mestre queria "Seu Mestre mandou"... Boca de forno—forno. Fareis um bolo—bolo. Fareis tudo que seu Mestre mandar?... Tavam ali as duas, bem no papel de cada uma. E o Mestre de vez em quando falava lento, com a boca ainda cheia de bolinho de camarão:

—Há mu-i-tas mo-mo-radas na ca-sa de meu Pai...

—Muitas o quê? Namoradas? entendeu ruim Marta, de mão na cintura.

O Mestre, mão-boba fazendo festinha em Maria, que se babava toda.

—Na ver-da-de ela es-co-lheu a me-lhor parte...

—Melhor mesmo, é isto que eu digo. Eu aqui levanto de manhã, espano, lavo, vou à feira, faço prodígios, ouviram, prodígios para fazer a feira com esta miséria de dinheiro, cada vez dá menos. Carrego balde, esfrego chão, limpo camarão e ela...

Maria-toda-lindinha, um pacote de feminilidade socada, empilhada, há séculos. A essência da mulher. Maria, a pecadora semi-arrependida. Figurara mesmo em anúncios de revista. Isto, nos melhores tempos.

Tem também a história pregressa de Maria. Mais simples do que as fofocas históricas querem: pois não é uma história de pecado, mas de "procura de Mestre": Maria, que nunca fora analisada mesmo porque doutor Sigismundo não tinha nascido, queria era o colo do papai dela, que tinha perdido. De vez em quando encarnava o Mestre em algum, suplicava, vem cá que eu quero... Mas aí, mesmo não analisada se mancava, não dizia o que queria. Disfarçava com aquela história de lavar os pés, secar com o cabelo.

Muitos foram nessa conversa. Porque quem não gosta de mulher bonita lavando pé? Só que depois cansavam daquela eterna posição de Mestre-com-Maria-sentada aos pés, tinham mais que fazer, agendas e compromissos, coquetéis e esposas. Essas coisas. Se mandavam.

Maria sentava no chão e esperneava, "eu queria um Mestre para sentar aos pés dele, uh! uh! uh! ". Se achando tão bela e só. Incompreendida. Mariazinha toda lindinha, de cinco anos, esperneando no chão. As amigas mais avançadas diziam, "Sai dessa, Maria, isso nem se usa mais". Ela, nada. Só naquela de esperar Mestre, lendo Vogue Cláudia Desfile Harper's Bazaar e até Time magazine. Para ter assunto e entreter o Mestre.

Já a psicologia de Marta era diferente. Era um "faz de conta que não tem importância" mas que tinha. Cara enfarruscada, cabelo de arame, dizia que "mulher que só pensa em homem não presta". Mas só vivia para o Mestre também, trabalhando, cozinhando, esfregando o chão, "Marta-a-Vítima" (que era como gostava de se ver).

E o Mestre... Bem, o Mestre era filho único, desses que nunca tinha jogado futebol na infância. Cuidava muito dos cabelos, penteava a barba, fazia ginástica da Força Aérea Canadense todas as manhãs, gritava:

—Marta, a minha cueca!

Depois, pronto. Compunha a estampa, com as duas.

De vez em quando apareciam os discípulos para tomar chope e falar de estruturalismo.

Marta, nessa hora, pé-que-ante-pé saía da estampa. Se mandava toda outra para a cozinha, ver a novela das oito, a cara enfarruscada se alisando, recuperando até uma certa beleza dessas todo-dia, que era o seu gênero:—uma cara de infância.

Maria não podia se mandar. Mais do que nunca naqueles momentos decorativos presa à estampa, parte integrante dos ditos pés do Senhor. Meigolenta. (Ah, pelo menos isso é o que pensava o Mestre, se babando de tão mestre. Porque Maria, na sua lindice, conservava um olho, um olho só, de coruja, atento e vigilante. Fingia dormir aos pés do Mestre, se chateava de morte com estruturalismo e nunca soube o que era fenomenologia, mas seu segredo o olho atento e vigilante-feio, porque olho de coruja é feio. Mas vivo.)

Formadas, as estampas clássicas nunca desaparecem de repente. Principalmente se, como esta, têm milhares de edições, Não desaparecem da parede sem mais. Pedacinho por pedacinho, nesgas permanecendo como feridas, na parede descascada. Esta, foi assim que começou a rasgar:

Um dia, sem mais, Marta teve um acesso de loucura. Pôs sua cara mais feia, toda louquinha, uma cara de muita maldade, rindo mais no canto do olho do que na boca. Chamou Maria de lado:

—É preciso matar o Mestre.

Maria foi abrindo uma boca—linda—enormemente com espanto. Enquanto Marta se desdobrava, trocando em miúdos:

—Matá-lo, cortá-lo em pedacinhos. Depois guisá-lo, em lugar dos camarões. Quer ver, tem muitas receitas.

Animada, toda bruxinha, correu à sua estante especializada em culinária, tinha até Larousse gastronômico, colecionara durante anos—ou séculos?—só receitas de Mestre: ensopado, frito, refogado com chuchu...

—Que tal esta? perguntou apontando para uma ilustração do Mestre assado por inteiro, numa travessa gigante com uma rodela de limão na boca.

Mas Maria, recuperada do espanto, olhou-a de alto a baixo:

—Você está louca, Marta.

A euforia de Marta acabou de chofre, ela ficou vazia e pendente, mais vazia e pendente do que nunca, com o inútil livro de receitas carinhosamente guardado há tanto tempo. Depois, perplexa, os olhos divagando cada qual pra um lado, feia e pobrezinha, esfregou os rins que doíam e concluiu meio desenxabida:

—É. Eu estou é pré-menstrual.

Foi tomar um banho quente de assento e se trancou no quarto, curtindo em gozo uma menstruação de quarenta dias.

Maria enrolou um cacho louro e foi voltando devagarinho, mas mais devagarinho do que nunca, para a estampa. Meio curvada e sem vontade. Apertando contra o peito o seu olho feio de vivo de coruja, talismã—um olho que se parecia tanto com os de Marta, a feia.

O Mestre notou alguma coisa e perguntou o que era.

—Nada. Acho que estou pré-menstrual, mentiu Maria, apropriando-se da menstruação da irmã.

Ah, fez o Mestre, num raro traço de compreensão masculina.

Parecia dizer que perdoava. Perdoava a Maria. A menstruação. Perdoava o quê? se perguntou de repente Maria, notando parece que pela primeira vez aquela mão no ar que-sempre-abençoando.

Mas o pensamento não era o forte de Maria, ela deixou tudo pra lá, porque se eles começassem realmente a nascer em sua cabeça loira, arriscariam transformá-la em cabeça de Medusa.

—Estou com dor de cabeça.

E Maria-a-Linda, e Marta-a-Feia, ambas refugiadas uma numa menstruação verdadeira, outra numa falsa dor de cabeça, voltaram a dormir durante alguns milênios.

Nessa ausência, que era dor e solidão, as três figuras paradas. Crise de neurose de Maria: Maria enrolou seus anelados cabelos, contagiada pela pensamentice de Marta—isso quando acordou, é claro. Coitada de Maria toda enroladinha e já com a consciência de enrolamento nela, isso o pior.

Um enrolamento que se resumia na pergunta: mas como não gostar de cobertor?

Cobertor e pé-de-Mestre, as duas coisas de que Maria gostava.

—Ora, isso é falta de serviço e de vergonha, foi dizendo Marta positiva, de vassoura na mão, já recuperada para o que se chama de vida, restabelecida da menstruação de quarenta dias e da vontade de picar Mestre em pedacinhos.

Nhê, nhê, nhê... choramingava Maria. Mariazinha. Uma galanteza, se enxugando o olho com os cabelos dourados (já mais para o grisalho, para falar a verdade). Nhê, nhê, nhê, o que fazer, eu gosto de me enrolar macia como gata no cobertor no pé do Mestre...

—Pé-de-moleque não serve? Tem uns aí que eu fiz ontem.

Maria, Mariazinha, emburrou com o excesso de espírito prático da irmã. Mariazinha, toda lindinha. Nos seus trinta e cinco anos.

A esta altura dos acontecimentos é claro que a estampa já estava pra lá de estragada. Só que as duas não tinham ainda resolvido o que fazer, no caso dela se desmanchar por completo. Então, quando se dependuravam na janela da gravura e percebiam que havia muita gente lá de fora espiando o que se passava naquele ménage-à-trois secular, disfarçavam, punham suas melhores caras, ligavam a vitrola e corriam a alisar as bordas da estampa, grudando-a com cuspe na parede. Para que todo mundo pensasse, vendo-a ali, consabida e manjada, sempre grudadinha no mesmo lugar, que não se alterara. Nem amarelecera.

Só que dentro do enrolamento de Maria foi surgindo uma raiva. Uma raivinha, porque nela tudo era bonitinho e diminutivo. Foi desde o dia em que reparava naquele gesto do Mestre de mão no ar que-sempre-perdoando, "perdoada de quê".

Mas com a raiva dentro dela, quando olhou no espelho se assustou, vendo-se feia—quase uma Marta, de repente? No primeiro momento pensou na Clínica Pitangui. Mas não teria dinheiro, não era celebridade alguma para poder se pagar a remoção de suas ruguinhas. Talvez fosse um caso social? Diziam que o famoso cirurgião fazia de graça, nos casos sociais. Mas depois tornou a se olhar no espelho e viu que era exagero. Se não pensasse nada, se esvaziasse o pensamento de toda a sua raiva-raivinha, pronto, lá estava ela linda e serena. Na sua majestade veio vindo, arrumou com cuidado as dobras da túnica do Mestre, se sentou.

O Mestre abriu um olho fossilizado e disse:

—Pô, tu tá bonita, mulher.

Naquela noite vieram novamente os discípulos, bebeu-se muito chope, comeu-se os célebres bolinhos de camarão de Marta, discutiu-se Gramsci e o futuro do comunismo internacional, a baixa da bolsa e as pescarias do Lago Tiberíades. Pedro que era meio chato achou um jeito de falar no reumatismo da sogra e o Mestre, bem-humorado e badalado, disse que ia dar um jeito.

E Marta?

Marta, a de prendas domésticas, de cabelos de arame, que gostava da novela das oito e colecionava receitas de Mestre?

Ora, Marta era virgem. Aos 38 anos. Não que o Mestre não tivesse querido, que ele gostava de variação. Mas pensando bem, ele não queria correr o risco de perder a cozinheira.

Marta constituía a sua feiúra-maldade de mentira (que no fundo era boa), como uma defesa orgulhosa: "Ah, eu não me dou!". Mas às vezes, muito às vezes, se debruçava sobre o poço fundo que era o do "deixar-se ir", ficava perplexa. Tinha medo. Medo de desaparecer no poço, toda afogada, sumida, só o pezinho de Marta de fora, um pezinho de Martinha tão pequenina também...

Desdebruçava do poço, incrustava-se na sua atividade, "meu Deus, quanta roupa para lavar, quanta poeira para limpar". Acho que até gostava de tanta poeira que lhe dava um sentido à existência, limpava, limpava, nunca acabava.

E continuava, pelos anos, com a vassoura na mão, bruxa de si própria, perseguindo-se sem piedade até ficar de corpo moído e poder dormir bem. "Nunca tive insônia!", dizia, de dedo em riste.

Enquanto isso Maria se-dando, se-dando, facilzinha, tão putinha. Ah!—mas, no fundo, não se dava não, se guardava bem guardadinha—com o olho mau vigilante de coruja muito conservado, talismã: pedra-resistência. E um dia, de repente, pensou, de tanto ver o Mestre-estátua, fossilizado-sempre-o-mesmo: o Mestre ora, apenas um catalisador.

E saiu pulando contentinha (ou no fundo um pouco decepcionada?).

—Marta, Marta, olha só uma coisa, o Mestre não existe, o Mestre não existe!

Marta, que tava botando roupa no varal, parou, assustada.

—É sim, Marta, o Mestre é só um catalisador.

—Cata... o quê?

—Cata as coisas dentro da gente, que nem piolho, uma por uma, traz para fora, esmaga, assim.

—Que nojo!

E foi a vez de Marta olhá-la nos olhos:

—Maria, você está louca.

Mas Maria, ao contrário de Marta na outra cena, não murchou, ficou falando catadupas cataratas se espalhando se esporrando.

E era uma loucura linda a de Maria, uma loucura saltitante de menina em férias, ela jogando as roupas do varal todas para o ar—libertas!—elas lindas como pássaros e brancas no espaço voando, se desfraldando, depois caindo bem longe, se sujando de novo, que importa, que importa?

Uma loucura tão linda que Marta nem reclamou da roupa. Até, dando a mão à Maria, saíram, Mariazinha e Martinha, pulando, as duas contentes, pelo campo, livres, sem Mestre, sem roupa, sem estampa, sem nada.

Livres?

Quando estavam muito longe da estampa e de tudo, muito contentes no meio do campo, pararam as duas ao mesmo tempo: teria sido tão simples assim?

—Eu acho que não, disse Marta depois de um tempo. Não, afinal de contas não é assim tão fácil, ficamos tanto tempo lá. E depois temos de voltar para apanhar nossos trens (Marta cultivava uns ligeiros modismos mineiros).

—Bem, mas pelo menos agora a gente não tem mais dúvidas, respondeu Maria depois de pensar bem o seu minuto de silêncio.

Já passava das sete. Também tinham de pensar no jantar.

As duas irmãs voltaram quietas, nem se dando as mãos. Cada qual de seu lado, pensamentando. Sem tristeza. Sem alegria. Numa quase serenidade.

Daquele dia em diante passaram a interrogar-se, debruçadas uma sobre a outra, se definindo, se achando, se completando.

(Já isto, fora da gravura, embora voltassem a ela religiosamente, no fim das pensamentices. No quarto. Na cozinha. Apenas o Mestre permanecia, estátua, dentro da gravura estragada. E as duas nem se preocupavam com o que as pessoas diziam. Mesmo porque as outras pessoas já nem olhavam mais para a estampa na parede, de tão ocupadas que andavam com outras coisas—a poluição do mar ou os estudantes metralhados, por exemplo, Ou a eterna alta do custo de vida.)

Uma coisa que Marta-Maria se perguntaram:

—Quando pára, você tem medo do quê, Maria?

—De ficar feia, Marta.

Resposta que fez Marta se animar toda, de repente, porque percebeu que o seu, pelo contrário, era o medo de ficar bonita. (Que esse era o seu medo de se entregar, o medo do fundo do poço, ou de sair se explodindo em vermelho, ela que só gostava de cinza e marrom.)

—Maria, disse Marta devagar, mastigando um pouco as palavras, de tão embaraçada. Maria, eu tenho medo e vergonha de estar sendo.

—Sendo... o quê?

—Sendo.

Respondeu Marta lenta, a esta altura toda perdida a sua agitação, uma Marta sem vassouras e caçarolas, obrigações ou ódios, uma Marta de cara alisada, uma Marta quase Maria.

Ambas sentadinhas no degrau da cozinha, niveladas, Marta sem sua agitação maníaca, Maria sem sua contemplação depressiva, Marta perguntou:

—Maria. Me responde francamente. Que tal o Mestre como homem?

Maria, se realizando devagar, foi desenrolando:

—Marta, eu sou uma perdida...

Marta compreendia: Maria era uma perdida de perdida mesmo, de desorientada e confusa. Que nem sabia responder sobre o Mestre ou sobre nada, com certeza. A perdida é uma que procura, que não achou.

—Eu parece que sempre procurei muito alguma coisa que não sei... Como se eu só me sentisse eu, você entendeu, com alguém segurando a minha mão...

—Ou te tomando no colo?

Então Maria começou a chorar, mansamente, da fundura uma mágoa, você compreende, Marta, uma dor, solidão maior do que todas.

—Uma ferida, completou Marta baixinho como quem sabe muito.

—Uma ferida.

Na ferida comum reconhecida, as duas quase-uma, agora. Subentendido que era uma ferida não cicatrizável.

—Pelo menos por enquanto.

—É uma ferida, um medo, um desejo o que nos prende então..

Ambas se voltaram para a estátua do Mestre, inquisidoras. Aí aconteceu algo: a estátua desvirou estátua. O Mestre, que era até bem vivo diga-se de passagem, compreendeu o que estava acontecendo, que risco corria. Recorreu ao truque já amplamente manjado: propor casamento. Ou quis recorrer. Nem deu tempo: as duas já estavam na cena seguinte, arrumando as malas naquela pressa de filme americano antigo.

—Escute, Marta, ainda acho que tem alguma coisa errada. Esta cena que estamos fazendo é típica de fuga. Eu não queria apenas fugir, porque daí não adianta.

—E se a gente conversasse com ele?

O espanto de Maria foi grande. Que novidade absoluta, desde quando o Mestre era algo, pessoa ou estátua, conversável?

—Quem sabe se ele também é gente? perguntou Marta.

Pé ante pé as duas voltaram para a sala, menininhas curiosando, circulando de leve ao redor do seu Tudo (que estava é quase explodindo em choro, por ter sido excluído da brincadeira). Mas ele não podia dar o braço, ou qualquer outra coisa, a torcer. Então se enrijeceu ainda mais, ("menino não chora"), a mão-que-sempre-abençoando desceu, controlando fúrias de bater nas duas-uma. Firmou-a no joelho, trocando a pose de um deus pelo outro, desta vez um deus egípcio de olhinho azul brincando de não piscar. Olho doeu, piscou. Os olhos começaram a lacrimejar, da fixidez, da raiva, do cansaço.

ô... ô... ô... se espantaram as duas.

É a estátua que chora, venham todos ver, estátua milagrosa que chora senhoras e senhores, heraldou Marta a espevitada.

"E se eu fizesse cócegas?" pensou Maria já experimentando. Devagarinho cócega cocegazinha assim assim aqui e ali desmancha ô Mestre desmancha se faz de gente pô, tu já perdeu aquela mão no ar parada já manjou que o negócio hoje é outro, deixa estar Mestrezinho tua Mariazinha vai te ensinar te desmanchar te desmanchar. Te desmamar. Te desarmar.

O Mestre tava que não podia. Ia rir, ia se meigolear, também ele, pegar aquela mulher, aquelas duas-mulheres-uma nos braços, derretidas suas reticências ao sol de meio-dia da mão de Maria, último forte Apache soldado morto em cada torção do corpo, os gestos todos tão nobres e rígidos de sua vida tavam cada qual deles, os gestos, esfarripados tremulentos de medo e de gozo...

Foi nesse momento, nesse exato momento, que uma nuvem escura apareceu, enorme, terrível, um relâmpago cruzou os ares, o ribombo do trovão se fez ali mesmo, na estampa: era o Padre Eterno em pessoa que se tinha abalado do seu trono, El-Magnífico deslocando comodidades milenares e estafando cavalos chegava, rodeado de todas as majestades e potestades. Abriu um pedaço da nuvem cor de chumbo, botou para fora só um olho, aquele olho terrivelmente judaico das caixas de fósforo Marca Olho, e tronivejou:

—Filho meu que fazes aí? Te manda dessa, que Nossa Autoridade está perdida!

O Filho tremulou de espanto, que aquilo não era hora pra pai nenhum chegar, fugiu pro canto que nem menino colhido em coisa feia, segurando os colhões.

Marta, a quem não era dado ouvir vozes celestiais mas que se abalara com o trovão, deu um grito:

—Nossa, a roupa que tá no varal!

Maria deixou cair os braços, desanimada.

E aí o que aconteceu?

Se me lembro. Não sei bem. Passou-se muito tempo e a gravura toda se esfacelou, enrolando nas pontas, como papel há muito—em que dilúvio catastrófico?—chamuscado.

E quando ela abriu os olhos, levantou os braços, respirou—abriu a janela do seu apartamento em Ipanema, era uma manhã dessas que a gente pensa que é uma manhã em Ipanema, a primeira, a linda primeira manhã de sua vida de trinta e cinco anos, o mar se entregando doce e verde ao fundo. Respirou, respirou como se nunca tivesse respirado, Marta-Maria ou Maria-Marta, ela, ali, inteirinha. Quando se olhou no espelho espantou-se um pouco por ainda estar usando uma túnica bíblica ou seria uma saída de praia?

Examinou bem a túnica. Ainda cheirava a mofo, era sim a mesma de antigamente. Mas não teve pressa em despi-la logo. A túnica também teria de ir se desintegrando aos poucos no seu próprio corpo, pressentia. Sem pressa.

Por enquanto não tinha nem vontade de sair do apartamento. Bastava abrir a janela. Olhar o dia. E sentir que estava, pela primeira vez, inteira. E sozinha.

The original title of this short story is "Marta-Maria aos Pés do Senhor."

Kids Tales

Herrrr Bauer to see his son all blackie called Wolfgang Amadeus playing close Frrrrau Bauer Herrrr Fritz to have sudden idea to run to ask black father of white kid to look like aunt Margritt who had already died what time what hospital minute black kid to be born.

Cecília Prada

(Fato verídico, mencionado em Subsídios para uma História da Previdência Social no Brasil na Segunda Metade do Século XX. Cecília Prada, Ed. Moderna, São Paulo, 2.010.)

Erra uma vez Senhorr Bauer e Senhorra Bauer alemõs de Santa Catarina, que nunca tiverram parrente nenhum que não fosse de cabelinho loirrinho loirrinho olhinho zulzinho zulzinho.

Se reuniam todo domingo com amigos cantando bebendo chope alemães brasileirros alemãs com almofadas bordadas chalés fotos de álbuns conhecimento de parrentes até quinta geração Germania Deutschland Uber Alles. Bebendo que bebendo copulavam bem copuladinho jovem Senhorr Bauer jovem Senhorra Bauer na cama bem acolchoada debaixo do quadro do último rei da Baviera, Senhorra Bauer um dia dizer: Fritz eu acha vai ter bebê. Que alegria! Todo mundo ficar contente beber muita chope até titia Margritt que era surda e demorou para ouvir e todo mundo tias avós de várias gerações de alemanha-santa catarina e outras granjas tricotando tricotando tricotando bebê crescer no barriga Senhorra Bauer e um dia Senhorra Bauer dizer: Fritz acho vai nascer. E enton todo mundo entrar no perua Volkswagen família toda feliz até tia Margritt que era surda e enton Senhorra Bauer entrar no hospital e senhor Fritz pacejar sala do lado nervoso fumando charuto e bebê nasce não nasce vira no barriga da mãe dele e enton médico dizer: Senhorr Bauer, Senhorra Bauer precisa cesariana. E Senhorr Bauer concordar e enton Senhorra Bauer dizer que bom melhor num vai doer tanto então tomar anestesia e ficar tudo escurro.

E quando a Senhora Bauer acordou no quarto outra vez, e o bebê demorava para vir e o médico chamou, Senhor Bauer por favor uma palavrinha. Então passaram duas horas. As outras três mulheres do quarto olhavam para ela todo mundo olhava para ela, Senhora Bauer começou a chorar porque pensou que o bebê tinha morrido. Mas não era nada disso mas reparou que titia Margritt passou no corredor amparada por duas enfermeiras. Então Senhora Bauer que era mulher decidida dizer ao médico por favor, senhorr, eu querrer verdade, toda verdade, então...

—Não é nada não, o bebê nasceu bem, está vivo e forte. É um menino. (O médico novo mexia embaraçado no bolso do avental.) É normal, perfeitamente normal, fique tranqüila.

—Mas enton que há meu menino?

Senhor Fritz aparecer na porta lívido olhar mulher ir embora, então atrás dele entrar enfermera com máscara trazendo menino quieto, bonitinho, dormindo, pesando três quilos e meio, que menino forte: preto.

Mas como menino preto você sua vaca com quem dormiu Fritz eu jurra só amar você nunca olhar outro homem inda mais um preto Fritz você me conhece de menina da alemanha conhece titia Margritt Vovó Frieda saber eu moça decente nunca dormir outro homem Fritz meu amorr Fritz eu jurrar não saber como aconteceu este desgraça.

E Senhorr Fritz pobre Senhorr Fritz correr todas enfermarias do hospital procurando menino dizendo menino meu ser trocado e todo mundo jurar seu menino ser preto médico dizer senhor não conhecer fator recessivo lei de Mendel, Senhorr Fritz perder paciência querer bater médico seu burra de médico eu conhecer melhor que senhor eu ser especialista genética trinta e cinco mil gerações arianas nem sangue judeu nenhum tudo purro meu senhorra e mim e agora este bebê nascer de cor preta.

(Interlúdio: Senhorr Fritz Senhorra Bauer pensar que fazer jogar fora este bebê não ter outro melhor levar ele pra casa quem sabe depois ficar mais claro ser efeito de luz, levar bebê.)

(Passaram-se sete anos.)

Um dia Senhorr Fritz passeando no praia viu de repente família tudo preto passeando com menino loirrinho loirrinho olhinho zulzinho zulzinho cara tia Margritt que já tinha morrido. Senhorr Bauer olhar seu menino todo pretinho chamado Wolfgang Amadeus brincando perto Senhorra Bauer Senhorr Fritz ter idéia relâmpago correr perguntar pai preto de menino branco que hora que hospital que minuto menino branco carra tia Margritt que já tinha morrido nascer, pai preto dizer dia hora hospital minuto menino preto nascer, Senhorr Fritz dizer mas como senhor nunca notar senhor seu mulher também tudo preto deu filho cara tia Margritt que já morreu? Preto fazer que non com cabeça dar de ombro puxar mulher vem cá nega, esse gringo tá cum coisa mas então chamar Bastiãozinho de olhinho azul sempre pensar seu filho e olhar para filho chamado Wolfgang Amadeus pretinho de Senhor Bauer e reparar Wolfgang Amadeus também cara mãe dele chamada Joana do Poço.

Enton, grande confuson, fala que fala tira menino troca menino cara tia Margritt por menino cara de vó Joana do Poço nego num querer, beleléu armado, Senhor Bauer dizer eu dar menino preto chamado Wolfgang Amadeus mais duas partituras dele, preto não ouvir conversa de branco—chega pra lá, nega, esse gringo tá querendo tirá de nóis o Bastiãozinho, trocar menino preto por menino branco todo mundo quer mas agora que eu custei tanto pra ter filho de olho azul vem esse gringo aí com conversa.

Saiu tudo barulho confuson no jornal, até no televisão. Então casal Senhor Bauer Senhorra Bauer ficar de titio, né, titio de Bastiãozinho cara titia Margritt já tinha morrido, bilulú, belezinha, meninos brincar juntos ficar amigos que inocentes, coitadinhos ninguém tinha culpa a não ser o médico e o hospital mas isso num adiantar reclamar e todo mundo saber. E no meio daquele confuson todo mundo muito amigo beber chope junto assim até melhor dizer Senhorr Bauer ficar com dois meninos e então entrar no confuson um amigo inglês e olhar dois meninos brincando e dizer ha! ha! black and white e todo mundo também de porre beber muito chope blackandwhite cachaça da boa na confraternização universal, depois acabar festa e todo mundo sair Senhor Bauer Senhorra Bauer copulando bem copuladinho na cama sob a estampa do último rei da Baviera, e nego cum nega na enxerga, todo mundo feliz. Até que um dia Senhorra Bauer dizer: Fritz, que surpresa, acha vai ter outro nenê. E enton todo mundo ficar contente Wolfgang Amadeus e Bastiãozinho também que bonitinho ganhar irmãozinho novo, e então chegar dia Senhorra Bauer dizer, Fritz vamos correndo senão nasce no rua, este vem mais depressa... ah, e todo mundo entrar outra vez perua Volkswagen menos tia Margritt que já tinha morrido, e Senhora Bauer dar à luz bebê lindo, forte, robusto, menino, trés quilos e setecentos gramas: japonês.

The original title of this short story is "Conto dos Meninos"

Cannibalistic Dinners

But how could you put up with this? I suddenly asked, with a human bone choking me.

Cecília Prada

Acontece às vezes. Sim, já me aconteceu algumas vezes. Jantando, normalmente, na minha própria casa ou na casa de amigos, filhos adolescentes incluídos: de repente—entre a pizza infalível da família unida paulistana no domingo, ou na hora em que se despeja, amável, a cerveja no copo da visita—caem, sangrentos, pedaços de carne humana bem no meio de todos. As pessoas continuam tranqüilas, lambem um dedo, servem-se do guardanapo, sugam um osso.

—É carne humana, tenho de gritar (como aconteceu hoje).

Mas hoje, como sempre, o meu grito envolve-se num sorriso polido e desaparece, engolido. Senão... eu teria de levantar-me, ir embora. Vomitar sobre a melhor toalha das pessoas que me convidam? Impossível.

Aceito um pedaço. Ou vários. E também como.

—É carne humana.

Horácio, bem sucedido nos seus muitos anos de médico, direito à casa na City Pinheiros e carro com chofer, engole um pedaço da pizza dominical e conta passagens:

—Quando trabalhei como médico no Pátio do Colégio... A escada tinha sido apelidada de "escada rolante", ha! ha! Os presos só conseguiam pôr o pé no primeiro degrau. O resto da escada desciam aos trambolhões, se arrebentando todos, com os pontapés dos tiras.

Presunção legal, todo homem é considerado inocente até que. No filme americano. E a Scala Santa, em Roma, onde Jesus, coitado, foi empurrado, e que até hoje guarda as marcas do seu sacratíssimo sangue, uma escada que só se sobe de joelhos, porque ninguém é digno de pisar naqueles degraus e mesmo o Papa uma vez por ano sobe-a de joelhos.

—Mais um pedacinho?

Teresa, solícita, perfeita dona-de-casa-mulher-de-médico.

Fazem parte dos "encontros de casais" do bairro.

O relógio bate uma hora eterna. E os ossos começam a espalhar-se, tão numerosos, os ossos humanos, vísceras humanas, sangue humano—que não é de Cristo, que pena.

—Tinha uma mocinha que também trabalhava lá, todos os médicos queriam ver se tiravam uma lasquinha. É assim que se dizia naquele tempo. Mocinha frágil, delicada, loirinha. Então um dia ela vinha subindo essa escada e um preso tinha sido empurrado. Ela virou-se e assim, de repente sem que o homem lhe tivesse feito nada, deu-lhe um golpe seco na costela que o mandou até o patamar debaixo. Todo mundo gozou o outro, "ah, essa é que você queria, hein?... "

Passa o guardanapo nos lábios finos.

—Uma vez atendi um cara que estava com a mão machucada, tinha tentado quebrar uma delegacia. O delegado estava na ante-sala, perguntei esse cara aí quebrou uma delegacia? O delegado entrou—"conheço muito, ah, muito meu amigo, trate bem dele, doutor". Abraçava-o, "conserte o dedo dele, doutor, depois nós vamos lá embaixo para uma conversinha". Quando trouxeram de novo o cara para mim não o reconheci, punham ele em pé, ele caía feito uma trouxa.

Eu queria um pouco de doce de cidra da chácara?—ofereceu-me Teresa. E eu disse que estava de regime. A carne humana bastava.

—O pior eram as mulheres. As prostitutas. Marcadas com ferro. Batidas, nuas, enroladas num lençol eram jogadas no consultório em cima da mesa. Depois de tratadas, também eram mandadas de volta às celas nuas, tinham jogado fora toda a roupa delas. Às vezes elas ficavam lá até três meses. Até que alguém lhes jogasse uma roupa. Não tinham feito nada. Obrigadas a beber, nas casas, tinham emborcado em alguma baderna. Se fugiam das casas, os próprios tiras iam procurá-las, por causa da comissão que ganhavam. Nunca vi uma mulher sair desse ambiente. Os homens ainda têm alguma chance. As mulheres, não. Essa é a verdade.

—Mas como você agüentava isso? perguntei de repente, com um osso humano me engasgando na boca.

—A gente se acostuma com tudo. Fiquei lá acho que uns dois anos. Ou três, não sei bem. A gente embrutece. Uma vez foram presas três putas (Teresa, escandalizada, olhou para as filhas adolescentes).

—... putas... Eles haviam agarrado elas e metido em camisas de força, e iam puxando pelos cabelos, elas batendo as cabeças em todos os degraus de pedra.

A cerveja acabara. Não havia mais na geladeira? Conteve a custo a indignação.

—Se eu não ponho para gelar, ninguém lembra.

E de dentro do que ele continuava a falar, naquele tom pausado, neutro, de quem conta uma história, "a Rua dos Gusmões era um pouco melhor do que as outras, mas o Hipódromo... ninguém conseguia sair de lá sem uma boa tuberculose. As celas não tinham privadas, os presos faziam as necessidades no chão e a água corria sem cessar pelas celas, e assim eles viviam, deitavam, dormiam na água... "

De dentro desse jantar de domingo particularmente—ou banalmente sangrento?—me lembrei do meu primeiro almoço canibalesco, quando eu tinha treze anos...

—Coma, que está esperando?

Na hora do almoço, que era às 11 e meia em ponto, para eu não me atrasar para o colégio, foi-me servida, ainda fumegante, minha primeira refeição preparada com carne humana. Ali quente, sobre a toalha de xadrezinho que já estava com três dias de uso, espalhadas por meu tio Guaracy—que era funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana—as vísceras ensangüentadas, os membros mutilados, os três rapazes imprensados contra a parede e que tinham virado só uma pasta.

De gente.

—O maquinista tinha perdido a mãe na véspera e estava com 15 horas de trabalho sem parar.

Desastre. Não se fala de sexo—nem mesmo de partos diante de crianças. Mas um desastre, um bom desastre, da Sorocabana ou da Central, é sempre prato suculento. Servido com detalhes—a mãe, indo e vindo com as travessas, mais atenta ao caldo do feijão que não engrossou do que à pasta humana espalhada ali, diante da menina.

—Mas que está esperando? Coma, quer perder a hora?

—Não quer mesmo mais um pedaço?

O Brasil, naquele tempo, tinha as melhores leis trabalhistas do mundo.

E hoje, é feito por nós.

—Não obrigada, por hoje estou satisfeita.

The original title of this short story is "Jantares Canibalescos."

Cecília Prada is a well-known Brazilian journalist, fiction-writer and playwright. Her book O Caos na Sala de Jantar, ( Chaos in the Dining-room), published in 1978, has been awarded three literary prizes. She is considered a stylist and several of her short stories have been published also in Italy, Germany, Switzerland and Sweden, in anthologies. Her career as a playwright began in the 60's, in New York City, where she worked with Joe Chaikin's The Open Theater. In 1964 her play Central Park Bench Number 33, Flight 207 was staged at the Judson Poets' Theater in New York. She is also a former diplomat. She is divorced, has two married sons and three grandchildren and lives now in São Paulo, Brazil. Her e-mail is: atalanta.fnr@zaz.com.br 

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